Entrevista

Nova lei mira a arquitetura hostil e aporofobia; DP conversa com Padre Júlio Lancellotti

Ainda pendente de sanção presidencial, lei que leva o nome do religioso paulista proíbe intervenções em espaços públicos

Foto: Carlos Queiroz - DP - Apesar de ainda discreto, tema já aparece nas ruas de Pelotas

Por Lucas Kurz
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Aporofobia. Uma palavra relativamente nova no vocabulário, mas que representa uma expressão de preconceito cada vez mais comum: aversão, medo e desprezo por pessoas pobres. Essa atitude aparece em diversos pontos que passam batidos no dia a dia e acabam sendo até normalizados. Um deles é a intervenção hostil através da arquitetura, por meio de edificações que evitem a permanência de pessoas em situação de rua em espaços através da inserção de pedregulhos, objetos pontiagudos ou de bancos que não comportem uma pessoa deitada. Esse tipo de construção está agora na mira da lei com a aprovação, pelo Congresso, de um projeto que veda a chamada "arquitetura hostil", embora ela não seja feita, necessariamente, por arquitetos. Essa luta ganhou espaço nacionalmente através de uma pessoa, cujo nome, agora, batiza a lei: padre Júlio Lancellotti, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo.

No Centro de Pelotas, alguns pontos já apresentam arquitetura hostilFoto: Carlos Queiroz - DP

O projeto de lei 488/21 proíbe o uso de arquitetura hostil ao livre trânsito da população em situação de rua nos espaços de uso público e é de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES). A lei é inserida como um dispositivo no Estatuto da Cidade para realizar a "promoção de conforto, abrigo, descanso, bem estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado". O texto, agora, depende da sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL) para passar a valer.

Em Pelotas, a reportagem convidou a professora de Arquitetura da UFPel, Adriana Portella, acompanhada de três alunas do Laboratório de Estudos Comportamentais da universidade, que desde 2016 estuda impactos do comportamento da sociedade no ambiente. Elas caminharam pelo Centro da cidade e debateram o tema. Apesar da percepção de que essa realidade ainda não está tão presente na realidade pelotense quanto em outras cidades de maior porte, elas analisam que a arquitetura hostil precisa ter um entendimento acadêmico do que é e, acima disso, evitar a aporofobia. "Esse sentimento gera intervenções no espaço físico, que é resultado do comportamento da sociedade", explica a professora.

Aluna do oitavo semestre, Luciele Oliveira avalia que a academia também tem o papel de identificar esse tipo de projeto para evitar que isso se torne um padrão. Já Amanda Garcia, aluna do nono semestre, diz que a partir da percepção do conceito, consegue-se observar as intervenções, como a colocação de pedras pontiagudas, ferro em vitrines de lojas, proteções em bancos para que pessoas em vulnerabilidade não se abriguem, entre outros. "São pequenas intervenções que fazem total diferença para a população [em situação de rua]", explica. Lauren Gonçalves, formanda, lembra que diversos recursos utilizados acabam passando de maneira imperceptível, de forma a evitar uma permanência mais prolongada de pessoas, evitando, por exemplo, que sentem nos locais.

Injusto com a Arquitetura
A professora ressalta que o termo popularizado acaba sendo injusto com a área da Arquitetura. "Ela é qualquer coisa, menos o que a gente ensina dentro de uma faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Muitas dessas intervenções são feitas por outras pessoas", argumenta Adriana Portella. Ela reforça também que Pelotas acaba tendo um perfil diferente de grandes centros, quando nota-se isso em áreas como viadutos e pontes e um dos motivos acaba sendo a maior quantidade de população em situação de rua e imigrantes.

A professora aponta que o papel de conscientização contra a aporofobia é o passo primordial para evitar que isso se demonstre em outras formas. "O elemento físico é a consequência do comportamento da sociedade. Se ela não muda, não adianta retirar esse elemento que ele vai ressurgir em outro lugar." Muito além da arquitetura, atitudes como expulsar a pessoa molhando a calçada, jogando produtos de cheiro forte ou até mesmo maneiras mais diretas, como agressões físicas e verbais, representam esse tipo de preconceito contra quem vive na pobreza.

UFPel estuda o temaFoto: Carlos Queiroz - DP


Como a Gestão da Cidade trabalha o tema
Secretária de Gestão da Cidade e Mobilidade Urbana de Pelotas, Carmem Vera Roig diz que não há, atualmente, política específica voltada ao tema ou trabalhos voltados ao mobiliário urbano inclusivo especialmente dedicado à população de rua. "Com a aprovação da lei federal, o Município deverá elaborar uma legislação que detalhe e regulamente o que determina o Estatuto da Cidade em relação às funções sociais da cidade e da propriedade urbana", afirma.
Sobre a lei, a gestora diz considerar necessária, pois a cidade deve ser amistosa a todos. Porém, reforça a necessidade de outras políticas inclusivas para acolher esta população e que atitudes excludentes, como o emprego de técnicas construtivas hostis, não são a solução. "A arquitetura hostil não resolverá o grave problema, devemos buscar reduzir as desigualdades."
O assunto sob a ótica da Assistência Social
No último quadrimestre os serviços do Município atenderam cerca de 230 indivíduos em situação de rua, segundo o secretário de Assistência Social, Thiago Bündchen. Ele afirma que não há registro de violências recentes contra essa população e, atualmente, a pasta desenvolve ações que visam a garantia dos direitos e do desenvolvimento humano nas áreas de segurança de sobrevivência ou de rendimento e autonomia, segurança de convívio ou vivência familiar e segurança de acolhida.
"Tais seguranças visam, principalmente, ao fortalecimento de vínculos, à autoestima, à autonomia, ao protagonismo, à participação e à capacidade de proteção das famílias, indivíduos e comunidades", indica Bündchen. Ele ainda ressalta que a efetivação dessas atitudes está associada às demais políticas públicas, que atuam de forma articulada e indissociável.

Apesar de ainda discreto, tema já aparece nas ruas de PelotasFoto: Carlos Queiroz - DP


O secretário ressalta que a política de assistência social no Município é organizada para atender a população em diversos níveis de complexidade, tendo serviços como os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), além do Centro de Referência Especializado para a população em situação de rua, o Centro Pop. "Na unidade é ofertado atendimento psicossocial e interdisciplinar e disponibilizado espaço para guarda de pertences, higiene pessoal e comprovante de endereço social", ressalta. Ele funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, na rua Três de Maio, 1.070, no Centro. Pelotas também tem a Casa de Passagem, que oferta pernoites e serviços.
Segundo Bundchen, o perfil dos atendidos é de extrema pobreza, com vínculos familiares frágeis ou inexistentes e que utilizam as ruas e áreas degradadas como espaço de moradia temporária ou permanente. O grupo principal é formado por homens entre 29 e 59 anos de idade. O Município também conta com o Serviço Especializado em Abordagem Social, que oferece, entre outras coisas, a construção do processo de saída das ruas, e possibilita condições de acesso à rede de serviços e a benefícios assistenciais; identificar famílias e indivíduos com direitos violados, a natureza das violações, as condições em que vivem, estratégias de sobrevivência e procedências.
ENTREVISTA
Padre Júlio Lancellotti
Aos 73 anos, o pároco ganhou repercussão nacional em 2021 quando a Prefeitura de São Paulo colocou paralelepípedos sob um viaduto para evitar que moradores em situação de rua buscassem abrigo no local. O religioso, com uma marreta, tratou de tentar retirar as pedras. Na sequência, o Município, diante da repercussão negativa, fez a retirada.
Coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, Júlio Lancellotti ganhou espaço nas redes sociais pela luta contra a discriminação de pessoas em situação de rua, publicando em seu perfil no Instagram denúncias de aporofobia em diversos locais do País.

Religioso ganhou repercussão após ação em 2021Foto: Divulgação - DP


Após a aprovação da lei, ele conversou com o Diário Popular sobre o tema.

DP - Qual a importância de evitar a arquitetura hostil?

JL - A arquitetura hostil, que é chamada de violenta ou de intervenção hostil, é um sintoma muito visível da aporofobia, que é a rejeição, o rechaço aos pobres. Especialmente nas nossas grandes cidades, à população em situação de rua, aos migrantes. A intervenção hostil na arquitetura é o sintoma mais visível e que, quando nós colocamos que tem que ser superada ou vetada, não é para reivindicar que as pessoas fiquem nesses lugares. Ela é um sinal, um sintoma, da ausência de respostas humanizadoras, que gerem autonomia e respostas verdadeiras. Muitas cidades dizem "nós temos respostas, eles que não aderem". As respostas são sempre as mesmas. Elas não mudam. Então, passam décadas e a resposta é sempre a mesma e não são de autonomia, são em geral de tutela.

DP - O senhor vem ganhando espaço nacional e internacionalmente. Legisladores procuram o senhor?

JL - A gente tem tido bastante contato na Espanha, onde está a filósofa Adela Cortina, que cunhou o termo aporofobia. Eles têm tido muitas tentativas legislativas, inclusive no código penal, de criminalizar a aporofobia. Agora, o nosso projeto de lei, nesse sentido, é novo. Veta a utilização da arquitetura hostil, mas agora a gente está esperando para ver se ele será sancionado ou não pelo presidente da República. Mas isso é uma questão, ainda, que tem o prazo até dezembro para que aconteça. Ou vete, ou sancione, ou simplesmente não se manifeste. Agora, há alguma busca em alguns lugares. Por exemplo, no Brasil muitos municípios tentaram e a maior parte foi vetado. Porque o interesse do mercado imobiliário, da especulação imobiliária, é muito grande.

DP - É mais difícil lidar com a iniciativa privada?

JL - É bem difícil. Mas quando se fala em espaço público, pode ser também de uma empresa privada. Porque os espaços públicos são aqueles de utilização pública. Então, não é só o espaço estatal.

DP - Como padre, como ativista, de que maneira a gente pode agir para começar a pensar mais nesse tema?

JL - Uma questão fundamental, que é um princípio para nossa pastoral, é conviver. Se você não convive, você não conhece. E, na convivência, a construção é conjunta. Não é de cima para baixo ou uma imposição, mas uma construção coletiva, participativa, que nasce da convivência. Então, a maior parte das ações, tanto do Poder Público quanto de muitas igrejas ou entidades sociais, não têm convivência. Elas querem dar comida, mas não comer junto. Elas não convivem e, não convivendo, não conhecem o mundo dessas pessoas, os sentimentos, as emoções, as visões que eles têm. Nós conhecemos muito a visão que a sociedade tem da população de rua, mas conhecemos pouco a visão que eles têm.

DP - A população de rua aumentou em função da pandemia. Como deve-se pensar nisso e qual o próximo passo para tentar reverter?

JL - Eu acredito que uma providência imediata e que a gente propõe também ao governo federal é a inclusão da população em situação de rua nos programas de transferência de renda e programas de proteção social. Então, além de transferir a renda, a proteção social é garantir a saúde, a educação, a cultura e construir, com eles, respostas, não termos respostas padronizadas.

DP - E o indivíduo que quer fazer a diferença mas não sabe como. Qual sua dica?

JL - Uma coisa que todo mundo pode fazer: não discriminar, rejeitar, não ter um comportamento agressivo. Você não precisa, e não vai ter individualmente, ninguém tem, todas as respostas. Mas a capacidade de não rejeitar, de não ser cruel, de não discriminar, isso todo mundo pode fazer. Isso não custa nada. É só uma transformação interna e uma mudança pessoal. A gente tem um projeto de lei que veta a intervenção hostil, mas não vai ter uma lei que tira as pedras que estão dentro de nós, a indiferença, a agressividade, o preconceito, a discriminação. Isso é um processo educativo, de humanização, que deve estar presente no processo pedagógico, na socialização e na vida comunitária de todos nós.

DP - O senhor, mesmo sendo padre, acaba recebendo mensagens desrespeitosas.

JL - Eu penso que se você está do lado dos rejeitados, você vai ser rejeitado também. Se está do lado dos discriminados e que são tratados com crueldade, você vai ser também. Então, não posso querer buscar privilégio de estar do lado dos que são tratados com crueldade e não ser tratado assim também. Acho que faz parte da escolha do caminho e da própria trajetória. E eu acredito que quem se diz cristão e age dessa forma [agressiva] precisa rever suas posições.

DP - Quando a luta ao lado da população de rua virou sua causa de vida?

JL - Acho que sempre estive desse lado. Uma coisa que pra mim é claro, nunca estive de outro lado. Não é um momento, é uma construção de cada dia.

DP - A sua presença digital é muito forte. Como está sendo esse mundo para o senhor?

JL - Olha, o mundo digital tem vários lados. É como uma faca: serve para cortar o alimento, mas serve também para ferir. A gente tem que saber utilizar, eu não procuro utilizar as redes sociais para vigiar ninguém, para criticar ninguém, mas para defender a população em situação de rua e os pobres. Nesse sentido, é um tema que eu busco ser fiel.

DP - Qual a mensagem que o senhor deixa sobre acolher o próximo e evitar o preconceito?

JL - Independente de qualquer religião e ser cristão, é uma questão de humanização da vida. Então, sejamos humanizadores da vida. Sejamos pessoas plenamente humanas. As religiões, às vezes, são instrumentos, mas também podem nos desumanizar. Então, é preciso que nós tenhamos como princípio fundamental, e a religião é muito importante nisso, que é humanizar a vida, sermos mais humanos. Quem humaniza a vida não discrimina, não destrói, não é corrosivo, não tem uma atitude tóxica com seu semelhante.

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