Especial

15 de janeiro: já são 15 anos de saudade

No dia em que o mais triste capítulo da história xavante completa uma década e meia, o DP traz relatos de familiares de Claudio Milar, Régis Gouveia e Giovani Guimarães, além de outros personagens que vivenciaram a tristeza do acidente com o ônibus do Brasil

Foto: Augusto Cabral - GEB - Em 2024, Régis (E) completaria 44 anos; Milar, 50; e Giovani 55

Por Fernando Rascado e Gustavo Pereira
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O mais triste capítulo da história do Grêmio Esportivo Brasil completa 15 anos nesta segunda-feira (15). Com o tombamento na BR-392 do ônibus que transportava a delegação rubro-negra de volta a Pelotas após amistoso contra o Santa Cruz, a trajetória do clube mudou bruscamente. De lá para cá, o Xavante mostrou força e ressurgiu. Dentro de campo, subiu e caiu, ganhou e perdeu. Mas a saudade deixada pelas perdas precoces de Claudio Milar, Régis Gouveia e Giovani Guimarães é irreparável.

Os três estão eternizados com imagens no caminho para o Salão de Honras do estádio Bento Freitas, enquanto cada uma das famílias envolvidas ainda lida com a dor da ausência. O Diário Popular produziu um material especial a respeito da data. Foram ouvidos familiares das três vítimas, um jornalista que cobriu a tragédia, um sobrevivente, um jovem torcedor rubro-negro nascido em outubro de 2009 que quase recebeu o nome de Claudio Milar e, também, um dos autores do livro A noite que não acabou.

Confira, a seguir, a íntegra do material publicado em três edições da versão impressa do Jornal.

Parte 1
Memórias de quem viveu uma noite sem fim

Férias canceladas pelo dever profissional mais triste da carreira

Setorista do Brasil em 2009, Fernando Monassa teve a incumbência de fazer a cobertura do acidente do ônibus pela Rádio Gaúcha. Hoje, o profissional trabalha justamente no Xavante, clube que sempre foi o do seu coração. Com 25 anos de experiência no rádio pelotense, ele jamais esquecerá dos detalhes da responsabilidade mais difícil e triste de sua carreira.

Há 15 anos, Monassa trabalhava na Rádio Universidade, mas em 15 de janeiro aproveitava o primeiro dia de férias. Ele lembra que Paulo Martins e Régis Oliveira foram até Vale do Sol, de carro, para transmitir o amistoso entre Santa Cruz e Brasil. Os dois receberam convites para viajar no ônibus da delegação, mas acabaram indo por conta própria.

Atualmente repórter da TV Xavante, Fernando Monassa cobriu a tragédia para a Rádio Gaúcha. Foto: Italo Santos - Especial DP

À noite, Monassa organizava as malas para curtir o período de folga em Capão da Canoa, mas tudo mudou quando tocou o telefone. “Eu estava no sofá da minha casa às 11 horas arrumando minha mochila para aproveitar as férias. Eu iria viajar no outro dia pela manhã cedo. Até que o ex-presidente Ivânio Branco de Araújo ligou e perguntou: ‘está sabendo do que aconteceu com o ônibus do Brasil?’. Ele pediu para que descobrisse e retornasse o contato”, conta.

Monassa lembra que, tenso com a situação, ligou imediatamente para André Guerreiro, médico do Xavante à época. A chamada foi atendida e a informação confirmada, já deixando clara a gravidade da situação.

Depois de passar o recado ao ex-presidente Ivânio, Monassa foi ao Pronto-Socorro. De férias, não trabalhou na cobertura da Rádio Universidade. Naquele momento, as estações de Pelotas já estavam ao vivo com informações do acidente – a primeira foi a Pelotense, durante programa noturno conduzido por Henrique Pires.

Até que perto da meia-noite e meia da madrugada do dia 16, a produção da Rádio Gaúcha ligou para Monassa o convidando para fazer a cobertura voltada ao público de Porto Alegre. Os veículos da capital queriam saber principalmente da situação de Danrlei, goleiro do Brasil em 2009 e ídolo do Grêmio.

Pronto-Socorro tomado por rubro-negros aflitos

“Cheguei lá [Pronto-Socorro] e parecia que tinha jogo do Brasil de tanta gente. [...] Toda hora entrava ao vivo para dar boletins. A todo momento a cena horrorosa com um monte de macas esperando as ambulâncias chegarem. Aquilo foi constante, gente gritando, gente chorando. Familiares querendo saber o que estava acontecendo. A coisa foi indo para um lado trágico. A gente não sabia quem tinha falecido. Vinham as informações: ‘faleceu o fulano, o ciclano…’”, rememora.

Com o passar do tempo, chegou a oficialização que Monassa mais temia: a dos nomes das vítimas. “Eu tinha uma afinidade muito grande com os atletas. Era setorista, estava diariamente nos treinos. Até que veio a notícia confirmada das três mortes. Eu estava ao lado da esposa do Milar. Eu sabia que o Milar tinha morrido e ela não”, continua.

Minutos depois, André Guerreiro deu a notícia para as três famílias. Com o passar da madrugada, Monassa ainda tentou entrevistar Danrlei. Diante da tensão e da tristeza do momento, o goleiro não gostou da abordagem e preferiu não falar. Por fim, a imprensa aguardou a chegada do então presidente rubro-negro, Helder Lopes. Monassa conta que a cobertura terminou às 8h.

“Lembro que cheguei de manhã em casa. Sentei no sofá e liguei a televisão. Estava dando sobre o acidente. Apareceram os rostos do Milar, do Régis e do Giovani. Ali caiu a ficha. Ali eu desabei”.

Ligação com Milar, Régis e Giovani

Antes da cobertura mais difícil da carreira, Monassa viveu momentos marcantes com
Claudio Milar, Régis e Giovani Guimarães. Na véspera da viagem para o amistoso contra o Santa Cruz, o radialista tentou entrevistar Régis antes do treino. O zagueiro não se sentia à vontade diante dos microfones, ou seja, a tarefa não era das mais fáceis.

“Um dia antes do acidente, na sala de imprensa, eu entrevistei o Régis. Ele não gostava de falar. Eu com muito custo consegui gravar uma entrevista falando do jogo contra o Santa Cruz. Entrou o Alex Martins e começou a chamar ele de feio. O Régis ficou enlouquecido por ele ter interrompido a entrevista. Tive que fazer tudo de novo”, diz.

Minutos depois, Monassa estava em frente ao Bento Freitas enquanto a delegação xavante embarcava no ônibus para rumar ao treino no estádio do Arealense quando Giovani apareceu. “Eu estava com um CD que tinha ganhado de um amigo, os melhores sambas-enredo da General Telles. O Giovani pediu para ver e disse: ‘eu sou Telles, só tem sambão, é meu o CD e não te entrego mais’. Eu disse para ele não fazer isso, que era meu, que tinha ganho de presente. Então eu disse que iria na Telles comprar um CD para ele e entregaria na volta de Santa Cruz de presente”, relembra Monassa.

O último momento com Monassa ao lado de Claudio Milar aconteceu dias antes do acidente. O Brasil fez um amistoso contra um time uruguaio cujo treinador era o pai do ídolo xavante. Naquele dia, o eterno camisa 7 manifestou o desejo de ser um dia o presidente do Rubro-Negro.

“Termina o jogo, eu vou até o meio do campo. O Milar chega, bota a mão no meu ombro e diz assim: ‘me leva até meu pai’. Eu lembro que ele abraçou o pai dele chorando e, no microfone da Rádio Universidade, disse: ‘agora eu estou realizado. Trouxe o meu pai para cá, jogar uma partida no Bento Freitas. O meu país Uruguai contra o clube do meu coração. Agora estou realizado. Não sei quando vou parar de jogar, mas uma coisa é certa, o dia que eu parar de jogar futebol, o meu sonho, o meu objetivo, é ser presidente do Brasil’”, relembra Monassa com lágrimas nos olhos.

Fora dos gramados, ainda um xavante

Hoje com 39 anos, Edu reside em Pelotas e é concursado. Aposentado dos gramados desde o acidente, não se casou e não teve filhos. Segue acompanhando futebol, mas não tem ido com tanta frequência aos jogos do Brasil no Bento Freitas. Apesar do trauma vivido e do fim precoce da carreira, ele diz não ter mágoas e que se sente bem. Porém, admite ainda encarar algumas sequelas emocionais.

“Estou bem. Ainda tenho uma certa fobia de pegar ônibus ou até avião. Começa a suar a mão, vêm umas lembranças do acidente, mas de resto, para a vida, estou bem. Questão de alguns medos psicológicos. Desde o acidente eu tomo um antidepressivo, tratamento de ansiedade. Sigo com o processo judicial contra a empresa [Bosembecker, responsável pelo ônibus fretado], mas não tem nada definido ainda”, afirma o ex-jogador rubro-negro.

Entre os que sobreviveram, Edu enfrentou o quadro mais grave. Foram dois meses internado. Por muito pouco não teve uma perna amputada. Ele perdeu parte da musculatura e da pele da coxa. “Eu tive que fazer a regeneração toda da perna na clínica do André Guerreiro [médico do clube à época]. Foi até uma coisa inovadora, um plasma rico em plaquetas. Eu estava só pele e osso. Deu uma regenerada na musculatura com essa técnica que ele aplicou em mim. Estou bem para viver, para caminhar, mas para jogar nem arrisco”, explica.

Edu ficou hospitalizado um dia a mais que Paulo Roberto, auxiliar do Brasil. O componente da comissão técnica perdeu parte do tendão de aquiles. Passado o longo período de recuperação, Edu não teve condições de seguir jogando. Em 2009 ele tinha 24 anos e estava no Brasil desde 2008. O volante conta que justamente o Xavante foi o time pelo qual menos atuou na carreira.

Na segunda rodada do Gauchão de 2008, o Bento Freitas lotado testemunhou o ídolo Claudio Milar marcar seu 100º gol pelo Brasil, em goleada sobre o São José. Entretanto, aquele dia não foi bom para todos: Edu rompeu os ligamentos do joelho e ficou nove meses longe dos gramados. O ex-meio-campista conta que poderia ter retornado durante a Série C do Brasileirão, mas ouviu recomendações para voltar 100% no Estadual da temporada seguinte.

No dia do acidente, Edu havia sido escalado como titular pelo técnico Armando Desessards nos 2 a 1 sobre o Santa Cruz, em partida que se tornou a última dele como atleta profissional.

Novos caminhos na vida

Sem condições de seguir jogando, Edu cursou Educação Física. Formado, recebeu o convite do próprio Brasil para fazer parte da comissão técnica de Beto Almeida e depois de Luizinho Vieira. Acabou saindo com a chegada de Rogério Zimmermann, que montou o próprio staff em 2012.

No entanto, a carreira no futebol mesmo fora do campo, não durou muito tempo. Edu passou em um concurso, deixando de vez a vida no esporte. “Eu já estava estudando para outros objetivos. O futebol é meio complicado. Fiquei estudando para concurso. Passei no concurso da Casa, antiga Febem. Era um concurso meio difícil. Fiquei estudando para outros concursos. Passei no que estou atualmente, que é o da Receita Federal, como assistente administrativo”, conta.

Luizinho Vieira manifestou a Edu o desejo de extensão da parceria como seu auxiliar, mas o ex-jogador estava decidido a focar em outras áreas que o permitissem viver sempre perto da família. Porém, Edu afirma seguir torcendo para o Xavante e para seu amigo, que hoje é treinador do Amazonas, com o qual subiu para a Série B do Brasileirão.

“Ele [Luizinho] é um ídolo do Brasil. Quando treinou, me acolheu super bem e até hoje gostaria que eu trabalhasse com ele, mas futebol é muito inconstante. Eu sempre quis estar com a família. Eu sei que é um cara que no futuro vai pegar time grande. Eu torço por ele, torço pelo Xavante também, estou sempre acompanhando. Não tenho nenhum remorso do futebol. Aconteceu, tenho que dar graças a Deus por estar vivo e bola para a frente, vamos seguir a vida”, completa.

Parte 2
Legados de três homens gravados na história

Nos passos do pai: "meu sonho, eu sempre disse, é jogar no Xavante"

No Club Atlético Ituzaingó, em Maldonado, cidade próxima a Punta del Este, joga um xavante. Hoje com 18 anos, Agustín Milar já nasceu com o sangue rubro-negro correndo nas veias. Apesar das poucas lembranças do pai, o filho do maior ídolo do Grêmio Esportivo Brasil carrega o legado do eterno camisa 7. Meio-campista, ele disputa competições de base no Uruguai e tem um sonho muito claro: defender o clube em que Claudio é lenda.

“Seria lindo jogar onde meu pai jogou, no clube que ele amava. Meu sonho, eu sempre disse, é jogar no Xavante. Jogar no estádio onde estão as cinzas do meu pai seria como jogar em casa ou senti-lo mais perto. É meu maior sonho”, diz. O jovem tinha só três anos naquele 15 de janeiro de 2009. A mãe, Silvia Carolina Garcia, o ajudou a construir e fortalecer memórias.

Aos 18 anos, Agustín Milar é meio-campista em clube de Maldonado, no Uruguai. Foto: Arquivo pessoal

Além da paixão pelo esporte, Agustín herdou do pai o interesse pelo Brasil. “Sigo os resultados do Xavante via Instagram. Não posso ver as partidas porque não há nenhum canal que passe. Também não encontrava na internet… Acompanho nos aplicativos de futebol que tenho e nas redes sociais do clube”, conta. A última vez de Agustín no Bento Freitas foi na goleada por 4 a 1 sobre o Atlético Cearense, pela Série C, em julho de 2022.

“A minha família é muito ‘futeboleira’, não há ninguém que não goste de futebol. A verdade é que herdei o Xavante. Infelizmente é um time que não posso ir ver muito [no estádio]. Graças ao meu pai, sinto bastante as cores do clube. Graças a ele, sempre quis jogar futebol, entrar nesse esporte que é o que mais amo fazer”, completa.

Avó de Agustín e mãe de Milar, Marisa Decuadra prefere não dar entrevista. Ainda sente muito a dor da perda precoce de Claudio, mas resume o sentimento com uma frase. “Meu filho amado está sempre com o Brasil porque levamos as cinzas dele e a jogamos por todo o campo”. No próximo dia 6 de abril, Roberto Claudio Milar Decuadra completaria 50 anos.

Uma luta por dignidade: "tento fazer o melhor para ajudar minha família"

Tiago Alves, 24 anos, chegou a ser zagueiro como o pai, Régis. Lesões o impediram de seguir a trajetória após passagem pela base do Farroupilha. Hoje, o jovem carrega uma responsabilidade que em 2009 era do defensor, titular na zaga xavante ao lado do amigo Alex Martins: sustentar uma família.

Pai de Kauê, dois anos, Tiago sofre com um problema de saúde e precisa realizar cirurgia estimada em R$ 35 mil. A mãe, Cristiane Rockembach, 44, tem trombose nas duas pernas. Ao lado deles vive Ester Alves, 21, também filha de Régis. Ela é mãe de Guilherme (cinco) e Isaque (um). Desde o acidente, a principal luta dos três, acompanhados por Miguel (12), Nicolas (dez), Helena (cinco) e Sara (dois), outros filhos de Cristiane, é por dignidade.

Ester e Tiago, ao lado da mãe, Cristiane, seguem a vida em Pelotas. Foto: Arquivo pessoal

Corre na Justiça um processo aberto pela família meses depois do acidente. Em 2012, sentença obrigou a empresa Bosembecker, responsável pelo ônibus, a pagar pensão alimentícia de aproximadamente R$ 2,5 mil a Cristiane e os filhos. Além disso, a decisão incluía indenização por danos morais e materiais que totalizavam cerca de R$ 500 mil. Conforme a advogada Marcela Simões, do Serviço de Atendimento Jurídico (SAJ) da UCPel, que atende a família desde novembro de 2022, o acordo da pensão alimentícia não é cumprido há nove anos.

Cristiane e Tiago fizeram, então, um acerto com a empresa. Ela receberia R$ 150 mil para encerrar o assunto. Ele embolsaria R$ 180 mil e uma casa avaliada na mesma quantia. De acordo com a família, o imóvel nunca foi transferido e parte irrisória dos valores foi paga ao filho de Régis. Dos R$ 150 mil, a matriarca viu um terço cair na conta, porém os R$ 100 mil restantes, divididos em parcelas de R$ 2 mil mensais, cessaram após um tempo. Cansada da situação, Cristiane alinhou verbalmente um pagamento de R$ 200 semanais da Bosembecker.

Em meio a esse cenário, a seguradora envolvida entrou em recuperação judicial, suspendendo o andamento do processo. Segundo a advogada do SAJ, é pleiteada a penhora de parte dos veículos da empresa. “Alguns veículos já possuem constrição judicial para serem levados a leilão e saldar esses valores descumpridos dentro do acordo. E também pleiteamos que exista um acordo ou uma proposta de acordo para a Ester”, explica Marcela.

“Tento fazer o possível para ajudar minha família. Minha função é trabalhar para não deixar faltar nada”, afirma Tiago. A mãe também manifesta indignação. “Já escutei muitas coisas durante esses 15 anos. Ninguém vai cobrar deles. [...] Isso parece que ficou esquecido, essa é a realidade”, lamenta Cristiane. No próximo 3 de junho, o pelotense Régis completaria 44 anos.

A reportagem do DP tentou contato com a Bosembecker, mas não conseguiu até a publicação desta reportagem. O espaço fica aberto para manifestação da empresa e a matéria passível de atualização.

Um vínculo permanente “Sempre me reconhecem por causa do meu pai”

A forte conexão da família Guimarães com o Brasil não se perdeu com a partida precoce de Giovani Guimarães, aos 40 anos. A filha do professor e então preparador de goleiros do Xavante para a temporada 2009, Helena, 17, passou a frequentar a Baixada há cerca de uma década. Acompanhada da tia, Márcia, irmã de Giovani, a jovem fortalece a longa relação do pai junto ao clube.

“O nosso programa de domingo era ir ao Bento Freitas. Em todos os jogos a gente vinha. Meus pais viajavam em tudo que é excursão”, relembra Márcia, que foi conselheira e integrou até pouco tempo o Grupo de Trabalho de Ações Sociais do Conselho Deliberativo do Rubro-Negro. “A Helena passou a ser minha companheira. Ela foi criando os ídolos dela dentro do clube, das pessoas que ela admirava, o Rogério Zimmermann…”, complementa.

Márcia (E) é irmã de Giovani e tia de Helena; na família Guimarães, ir ao Bento Freitas é tradição que não se perde. Foto: Jô Folha - DP

Muito ligada ao mundo dos esportes, a filha de Giovani joga vôlei e gosta de futebol. Pretende cursar Fisioterapia na graduação. Na casa xavante, sempre recebeu carinho. Longe dos holofotes, conta Márcia, a menina já recebeu lembranças do próprio Zimmermann, por exemplo. “É muito positivo isso das homenagens. É isso que a gente quer que a Helena guarde de lembranças dele. As atitudes dela, que a gente diz serem iguais às do pai. Os traços, o sorriso…”, relembra.

Ativo em projetos sociais ligados ao esporte nas escolas em que trabalhava, Giovani atuou nos três clubes de futebol de Pelotas. Como atleta, defendeu o Brasil nas categorias de base, por exemplo. Todas as memórias construídas foram transmitidas pela família a Helena. “É sempre assim, muito acolhimento. Em todos os lugares que eu vou sempre me reconhecem por causa do meu pai”, diz a jovem.

A pasta em que o ex-preparador de goleiros do Rubro-Negro guardava itens da vida profissional foi herdada pela filha. Ela também acumula fotos, camisetas, troféus e medalhas de Giovani. Destaca o papel da mãe, Zilmara, como essencial para lembrá-la do pai presente que teve. “A Helena é a presença viva do Giovani. Tu olhas os jeitos, a genética. [...] O aconchego da Baixada, da torcida. A gente tem certeza que isso foi muito positivo para ela”, opina Márcia.

Parte 3
Às novas gerações, lembranças concretas

O Lucas que quase foi Claudio Milar

Roberto Claudio Milar Decuadra marcou história no Bento Freitas e é o grande ídolo de muitas gerações de xavantes. Entre esses vários torcedores aparece Bruno Vasconcellos, cuja esposa estava grávida em janeiro de 2009. O filho nasceu em outubro se chamando Lucas, mas se dependesse da vontade do pai, o nome seria Claudio Milar.

“Eu estava indo para o cartório e minha tia foi junto para não deixar eu colocar. Acabou que não coloquei”, relembra. Hoje com 14 anos (completa 15 em outubro), Lucas admite que não gostaria de carregar o nome completo do ídolo, mas aprovaria uma ideia semelhante – Lucas Millar, por exemplo.

Nascido em outubro de 2009, Lucas Vasconcellos quase recebeu do pai, Bruno, o nome de Claudio Milar. Foto: Jô Folha - DP

Seu pai marcou presença na despedida do uruguaio, de Régis e de Giovani Guimarães na Baixada. “Foi muito triste. Era o nosso principal jogador e as outras duas pessoas foram importantes. Sei que meu pai ficou no velório desde o começo chorando até o final”, diz Lucas.

Hoje Bruno mora em Gramado. Antes de se mudar, porém, o pai conseguiu passar ao filho a paixão pelo Brasil e por Milar, mesmo sem Lucas ter visto ao vivo o eterno camisa 7. Questionado sobre qual seu maior ídolo no futebol, o jovem torcedor responde sem pestanejar.

“O pai falava muito dele quando eu era criança. Na época, quando descobri que meu nome quase foi Claudio Milar, eu queria que fosse, mas agora pensei melhor e acho que Lucas Milar já estaria bom. [...] Foi um dos melhores jogadores que o Brasil já teve. Goleador, fazia muito gol, ídolo. Foi um jogador muito importante”, destaca o jovem, atleta de futsal na categoria sub-15 do Clube Brilhante.

O fato mais marcante compartilhado por pai e filho na Baixada foi a partida contra o Fortaleza, pela Série C do Brasileirão de 2015. O Xavante venceu por 1 a 0 e na semana seguinte garantiu o acesso para a Série B. Hoje com quase 15 anos, Lucas afirma que não consegue ir com a mesma frequência aos jogos devido aos compromissos da escola e aos treinos do Brilhante, mas pretende acompanhar mais o time do coração em 2024.

Uma apuração esclarecedora que trouxe respostas 

Enquanto o Xavante juntava os cacos, ficando muito perto de um acesso à Série B do Brasileirão que chegaria anos depois, Nauro Júnior e Eduardo Cecconi trabalhavam. A dupla de jornalistas ouviu cerca de 300 pessoas para escrever A noite que não acabou, livro publicado no fim de 2009. Foram entrevistados todos os envolvidos, inclusive testemunhas, socorristas e médicos. A apuração ainda exigiu a leitura do inquérito do acidente e cinco passagens pela curva onde o ônibus tombou na BR-392, a 83 quilômetros de Pelotas.

Após seis reedições, obra dedicada ao assunto não será mais impressa; virou peça rara. Foto: Jô Folha - DP

“Poucas vezes me deparei com um fato histórico que transcendia uma cobertura jornalística”, diz Nauro. Após seis reedições, a obra não voltará a ser impressa. Com o tempo, transformou-se praticamente em um documento. “As pessoas me procuram pedindo. Se tornou uma peça raríssima. Não tenho mais e nem vamos fazer mais. Quem tem, tem, e cada vez vai se tornar um livro mais raro”, garante o idealizador.

À época fotógrafo da Zero Hora, Nauro era, também, amigo de Claudio Milar. Visitava com frequência a residência do uruguaio, com quem falou na véspera do acidente. Sabia da expectativa do camisa 7 de chegar em casa há exatos 15 anos para dormir ao lado do filho Agustín. Quis o destino que o jornalista, um dos responsáveis por cobrir a tragédia naquela madrugada, encarasse a dor e a tristeza de reconhecer o corpo do ídolo rubro-negro.

“Ele era tão louco pelo Brasil e tão fominha que tentava fazer gol olímpico. Enlouquecido para que o Brasil ganhasse qualquer jogo. Com medo de que alguém errasse uma cabeçada num escanteio, ele chutava em gol direto do escanteio”, exemplifica o autor de A noite que não acabou ao falar do amigo. Quando Milar marcou seu 100º gol pelo Xavante, foi Nauro quem registrou em uma foto a famosa ausência de uma das chuteiras, perdida na comemoração do lance histórico nos 4 a 1 sobre o São José, pelo Gauchão 2008.

A obra que narra o mais triste episódio da história rubro-negra foi a primeira de Nauro. Depois vieram várias, de diferentes estilos. Ele recorda do lançamento na Feira do Livro de Pelotas. “Parecia que o Brasil tinha sido campeão gaúcho. Foi um dia de exorcismo da torcida xavante. Eles estavam esperando muitas respostas que só o livro poderia dar. [...] Não gostaria de ter vivido essa experiência. Preferia não ter escrito, mas foi um relato necessário”, resume.

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