Entrevista

“Até hoje eles não conseguiram explicar o que aconteceu”, diz Rai Duarte

Um ano depois de ser agredido por policiais e ficar entre a vida e a morte, torcedor do Brasil fala ao DP; 17 militares seguem sob investigação

Foto: Carlos Queiroz - DP - Cicatrizes no abdômen mostram a gravidade da situação; Rai passou por 14 cirurgias e ainda fará novo procedimento

Por Gustavo Pereira e Fernando Rascado
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As cicatrizes na região do abdômen de Rai Duarte falam por si. São consequências da violência sofrida há um ano, quando sua vida virou de cabeça para baixo em um dia em que deixou Pelotas para acompanhar o time do coração. Na quinta-feira (27), o torcedor do Brasil recebeu a reportagem do DP para falar de tudo. Rotina atual, memórias do ocorrido em 1º de maio de 2022, batalha para sobreviver, próximos passos sob a ótica da saúde e o mais importante: a busca por justiça.

Afastado do trabalho, o agente comunitário municipal de saúde, de 34 anos, passou quase quatro meses no Hospital Cristo Redentor, na capital gaúcha. Deste tempo, 45 dias foram na UTI, gerando uma despesa que ele próprio estima em cerca de R$ 500 mil ao Estado. Em novembro, Rai viu nascer o filho Hyantony, um combustível para permanecer firme na recuperação.

O torcedor rubro-negro diz não ter ido ao Bento Freitas para acompanhar o jogo de quarta, do Xavante contra o Atlético Mineiro. Decisão fruto do receio pelos olhares que afirma receber de alguns agentes da Brigada Militar. Enquanto enfrenta limitações diárias, sem poder levar a vida de antes, Rai observa os desdobramentos do caso. Dezessete militares envolvidos – um tenente e 16 soldados - ainda são investigados e podem ser não apenas exonerados do serviço público, mas também presos.

Memórias e efeitos impactantes

Em relação aos traumas vividos naquele 1º de maio, Rai diz tentar não revisitar o que aconteceu e que as memórias aparecem mais durante o sono. “Eu tento não lembrar, mas na verdade eu sonho muito. Quando eu durmo que vem tudo aquilo na cabeça. Mas acordado eu tento fazer alguma coisa pra não ficar pensando”.

No total, o servidor público precisou fazer 14 cirurgias e recebeu cem pontos. Entre junho e julho passará por outra operação. Ele explica que a parede do seu abdômen está toda aberta, como se tivesse uma hérnia. Será preciso fechar, costurar e colocar uma tela. “Os órgãos estão todos soltos por dentro”, explica.

Sobre a rotina, o torcedor xavante conta que segue proibido de realizar algumas tarefas. “Afetou muita coisa. A primeira é que ainda não posso trabalhar. Não posso correr. Gostava de treinar, ir na academia, não posso fazer força. Mal consigo caminhar e tenho que caminhar devagar. O meu filho não posso pegar no colo. Já está com quase sete quilos e só posso pegar no máximo cinco”, lamenta.

O filho e os lados emocional e físico

Em relação ao pequeno, Rai Duarte diz que foi um fator primordial para se recuperar e voltar para casa. Hyantony nasceu no dia 2 de novembro, ou seja, quando foi internado, a esposa Aline vivia os primeiros meses de gestação. “Na real, o tempo todo que fiquei lá eu só queria voltar pra casa por causa do guri. O cara morrer e deixar um filho que nem viu, não tinha nem nascido, é complicado”, desabafa.

Hoje, ele diz não sentir dor. Emocionalmente se vê bem, tanto que não está em tratamento com nenhum especialista em saúde mental. Se alimenta de forma normal, sem restrições, além de não utilizar nenhum tipo de medicamento. “Não quis tratar com psicólogo. Conversei com psicólogo em Porto Alegre e ele falou que estou bem. Ficar quatro meses no hospital é de enlouquecer. Quando tu acorda tu só tem uma janela pra olhar”, recorda.

Com alimentação normal, Duarte também recuperou o antigo peso. Ele chegou ao hospital pesando 90 quilos, chegou a ter 48 e hoje está novamente com 90.

Caso grave

Os 116 dias de internação no hospital não foram por acaso. A situação era gravíssima. Rai conta como foi sua chegada e de que forma o caso mobilizou a unidade. “Quando cheguei no hospital, estava com hemorragia. Tinha comido churrasco e bebido cerveja, então quando a médica abriu ela se apavorou porque tinha comida, sangue, bebida. Quando abriu o abdômen estava perfurado, então estava tudo espalhado. A cirurgia começou com um médico e terminou com oito médicos. A primeira cirurgia durou umas sete horas”, fala.

O agente comunitário de saúde diz que o intestino sofreu perfuração quando foi algemado. Segundo ele, os policiais pegavam a ponta do cassetete e davam socos. “Não tinha como me defender porque eu estava algemado”, relata. O quadro era tão grave que, durante os primeiros dias, os médicos chegaram a avisar à mãe, Marta, que não teriam muito o que fazer.

“Foi um estrago muito grande. Foi um milagre, os médicos disseram pra minha mãe que não poderiam fazer mais nada. Que tinham mexido muito nele [intestino] e já não conseguiram saber qual órgão era qual”, diz. Rai relembra que a médica contou já havia operado “coisa pior”, mas que o caso dele não estava muito longe.

No dia da alta, o prontuário do torcedor rubro-negro registrava 400 páginas. Ele revela que cogitou mudar o tratamento para Pelotas. Até um avião havia sido arranjado, por amigos e familiares, para fazer o transporte, mas após escutar opiniões preferiu seguir em Porto Alegre, onde teria uma estrutura melhor.

Durante todo o tempo, Rai ficou acompanhado da mãe. Por noites, Marta dormiu na frente do hospital porque não podia entrar. Depois conseguiram um quarto para ela passar as noites com o filho. “A mãe está bem, mas normal não fica. Está consultando com psiquiatra, tomando remédio pra depressão, não é fácil. Passar tudo isso não é fácil. Ela ficou os quatro meses comigo”, fala.

Justiça

Rai Duarte segue lutando por seus direitos – e por justiça. Ele quer ver os policias que o agrediram punidos de forma exemplar. Conta que apanhou muito e sem nenhuma defesa, em um banheiro fechado dentro do estádio do São José.

O servidor público ainda relata que quando a corregedoria recolheu os telefones celulares dos suspeitos, havia mensagens de policiais torcendo para que ele morresse: “Uns tentavam defender, outros falavam que, se eu ficasse vivo, iria complicar pra eles”. Entre os 17 acusados, Rai afirma que nem todos são culpados pelo ocorrido, mas o problema é que ninguém entrega o colega. “Não teria porque os 17 estarem respondendo. Não foram todos. O problema é que não se acusam. Ficam todos quietinhos”, lamenta.

Principal vítima daquele episódio, que envolveu outros 11 xavantes, ele diz que os policiais afirmaram não ter feito nada, e que a torcida do Zequinha seria a responsável. Mas Duarte não participou da briga registrada após o empate por 1 a 1. “Até hoje eles não conseguiram explicar o que aconteceu, qual o motivo, o que eu fiz. Eles tentaram dizer que eu estava brigando. A Corregedoria viu todas as imagens, viram onde eu estava, puxaram tudo, só que estranho que desapareceram os vídeos, as imagens dentro do estádio”, enfatiza.

Futuro

O passo seguinte agora é realizar a última cirurgia, provavelmente em junho ou julho. Dois meses depois dessa próxima operação, Rai deve receber autorização para voltar a trabalhar. Na sequência, o plano é fazer um procedimento plástico para tentar deixar o abdômen como era antes, ou o mais similar possível. Todas as despesas têm sido pagas pelo Estado.

Investigação pode gerar exoneração e prisão de 17 policiais

Os desdobramentos jurídicos do caso continuam acontecendo. O Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado em maio do ano passado gerou um relatório que abriu os procedimentos. São 17 agentes investigados, e todos eles estão afastados de suas funções – sem carteira de policial e sem porte de arma, mas recebendo salário normalmente.

Dos 17 militares em questão, 16 são soldados. O outro, por ser tenente, passa por um Conselho de Justificação. Para este protocolo, os 12 torcedores do Brasil que foram vítimas de agressões naquele 1º de maio prestaram novo depoimento ao longo da última semana, na sede do CRPO Sul, em Pelotas.

Com os materiais coletados no IPM, haverá uma análise do comportamento do tenente. Ele pode, portanto, ser excluído do quadro do serviço público. No caso dos soldados, devido ao cargo ocupado, ocorre um processo diferente, nomeado Conselho de Disciplina. Este procedimento tem a capacidade de resultar nos mesmos fins: exoneração dos agentes.

Vale lembrar: os dois conselhos são de caráter administrativo dentro da Brigada Militar. Segundo o advogado de defesa de Rai Duarte e dos demais torcedores agredidos, Rafael Martinelli, a tendência é de que todos os 17 acabem excluídos da BM e presos. A prisão ainda dependeria de processos posteriores na Justiça Militar do Estado (JME), em trâmites que demorariam mais para transcorrer.

“Para algum policial conseguir escapar dessa condenação, só se comprovar que não estava no local do fato. Ou que não ele concorreu em nada pra prática daquele crime. E vai ser muito difícil comprovar isso, porque o IPM deixou claro, mais ou menos, os horários onde estavam naquele dia, quando chegaram no local. E os depoimentos das vítimas demonstram que eles constantemente foram agredidos”, projeta Martinelli.

A defesa de Rai Duarte já entrou judicialmente contra o Estado, pedindo indenização de R$ 400 mil. Também se estuda incluir o São José em outro processo com a alegação de que o clube da capital seria o responsável pela segurança de todos os torcedores presentes na partida.

Crimes e penas

O advogado das vítimas reforça a gravidade dos atos dos militares envolvidos em Porto Alegre há um ano. Ele afirma que ainda é cedo para quantificar possíveis penas, mas estima que o período varie de oito a 15 anos. “Ficou claro nesse IPM que houve sim crime de tortura, de lesão corporal grave”, sustenta.

A projeção de Martinelli considera a exoneração dos policiais como uma tendência. Posteriormente, enquanto tramitará o processo da JME na esfera criminal, todos, mesmo que excluídos da corporação, ainda poderiam buscar medidas judiciais para se manterem em seus respectivos cargos. Trata-se de um direito estipulado no estatuto da BM.

“Os que tiverem constatada participação mais ativa vão ter pena maior. Mas a tendência é que todos peguem pena – como são 12 denúncias de tortura, algumas lesões corporais. Esse crime vai ter aumento pelo crime continuado, vai ter um agravo na condenação”, explica o profissional.

Além dos crimes citados acima, os militares também podem responder como coautores, por exemplo, se a investigação assim considerar. “Simplesmente o policial estar lá presente, verificar que está acontecendo algum crime ali, e não fazer nada, no mínimo ele é um coautor ou omisso. Se contribuiu, facilitou, ou deu uma guarida que seja, deu respaldo, ele é um coautor. Se ele não fez nada, ficou inerte e não ajudou em nada, ele é um omisso”, fala Rafael Martinelli.

Prazos para definições

Perguntado sobre quando devem sair as sentenças do Conselho de Justificação, envolvendo o tenente, do Conselho de Disciplina, englobando os soldados, e as posteriores tramitações na esfera criminal, o advogado explica que o caso tende a demorar. Segundo ele, procedimentos na JME transcorrem de forma mais lenta. A previsão é de definições, no mínimo, no final deste ano ou começo de 2024.

Por outro lado, o Conselho de Justificação anda mais rápido, e há o objetivo de concluir os depoimentos na próxima semana. O relatório final deve estar pronto em julho ou agosto, quando então se saberia sobre a decisão de exclusão ou não do tenente. Com relação ao âmbito criminal, na JME, o início de julho marcará oitivas de testemunhas e vítimas. Réus terão prazo para apresentar defesa, ainda.

O que dizem BM, defesa dos réus e MP

Procurada pela reportagem, a Corregedoria-Geral da BM, por meio do Coronel Vladimir Luís Silva da Rosa, se posicionou. “O inquérito foi entregue, está já na Justiça Militar e não há, por parte da Brigada Militar, necessidade de manifestar-se. Agora é com a questão do Poder Judiciário Militar”, disse.

Também em contato com o DP, o advogado de defesa dos réus, Fábio Silveira, ressaltou o posicionamento de que, como criminalista, manifesta-se apenas dentro do processo. Já o Ministério Público, que em janeiro denunciou os 17 policiais em questão à Justiça Militar, comunicou que segue acompanhando os desdobramentos do caso e participa das audiências.

Relembre

Em 1º de maio de 2022, depois do empate por 1 a 1 entre Brasil e São José, no bairro Passo D'Areia, pela quarta rodada da Série C, uma briga generalizada ocorreu nas arquibancadas do estádio Francisco Noveletto. A BM interferiu ainda dentro do campo. Neste contexto, Rai Duarte, que não estava na confusão, foi retirado por policiais de um ônibus de excursão. Pouco mais tarde, acabou internado em estado grave no Hospital Cristo Redentor, com lesões graves na região do intestino. Outros torcedores xavantes também foram agredidos, em menor intensidade, e detidos.

No dia 3, a BM abriu inquérito interno para investigar a conduta dos agentes envolvidos. Em 4 de maio, o DP publicou matéria com relatos de dois torcedores do Brasil, que estavam presentes na abordagem da BM. Sob anonimato, ambos afirmaram ter existido tortura dos militares na ação. Na mesma semana, a BM iniciou as oitivas de agentes e a coleta de provas.

Em 15 de junho, Rai deixou a UTI e foi para um quarto. No dia 24 de agosto, deixou o hospital e retornou a Pelotas, onde até hoje enfrenta limitações oriundas das agressões sofridas na capital.

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