Realidade

A difícil missão de conviver em abrigos

Há 23 dias dividindo espaços em ginásios, desabrigados sentem efeitos da rotina que requer regras coletivas

Foto: Jô Folha - DP - São 96 pessoas vivendo no antigo ginásio esportivo da AABB

Já são 23 dias fora de casa e sem nenhuma esperança de encontrar o lar com condições imediatas de habitação após as cheias da Lagoa dos Patos e do Canal São Gonçalo. Para quem está em um dos abrigos de Pelotas, a convivência em confinamento gera efeitos não muito positivos. A falta de privacidade e o cumprimento de regras em ambiente compartilhado levam a certas discordâncias entre famílias, momento em que a intervenção dos coordenadores e voluntários se faz necessária. Muitos só desejam voltar para casa, pois dizem se ver obrigados a presenciar situações indesejadas, principalmente à noite. Outros estão preocupados com o boato de que dia 5 de junho todos terão que ir embora, informação não confirmada pela Prefeitura.

Durante as noites frias, pallets são usados de base nas camas para distanciar um pouco do piso da quadra. Foto: Jô Folha - DP


Nessa nova rotina, os ambientes foram se adaptando às condições, principalmente, climáticas. As famílias ainda precisam driblar o frio que chegou sem mesmo esperar a chuva ir embora. Por falar em chuva, quando está presente, insiste em entrar na AABB por meio de algumas goteiras. Lá estão 96 pessoas de 36 famílias e, assim como nos demais abrigos, todos ganharam pallets e papelão para proteger os colchões do chão gelado. Cobertores são pendurados nas telas para impedir a passagem do vento, e roupas, muitas roupas, mantêm a temperatura do corpo. O que aquece também são as refeições. Leite, café, pão com manteiga, arroz, feijão, guisado e frango desfiado garantem a dignidade dos moradores provisórios do abrigo, apesar das reclamações de que a comida é a mesma já há uma semana, como ouviu a reportagem. “Uma vez nos deram comida azeda e depois pediram desculpas”, disse uma abrigada.

Animais, como o gatinho Fred, foram colocados em baias para proteção deles e dos moradores. Foto: Jô Folha - DP


O caso foi confirmado pela dona de casa Aline Miranda Amaral, 26. No entanto, ela não tem do que se queixar da assistência social, pois seu filho tem intolerância ao glúten e toda a comida é especial. “Trazem até o leite para ele. O problema é a convivência à noite aqui dentro. As pessoas não têm respeito por quem está ao lado. Disseram que iam trancar os banheiros à noite, mas isso não aconteceu. Então a gente vê muita coisa acontecendo”, desabafou.

Moradora do Ceval, diz estar ansiosa para ir com a família - estão em cinco - para casa. “Tentei trocar de abrigo, mas não consegui”. Ela conta que falta roupa masculina para crianças de um a oito anos e adultos, pois não é sempre que aparecem voluntários que levam as peças para lavar. “Fica difícil, pois não tem como colocar uma roupa feminina em um guri, pois sofre bullying”. Por falar em roupa, a distribuição delas teria sido o motivo de desavença entre duas famílias, gerando um tumulto. No local, um guarda municipal acompanhou a cena. 

As responsáveis por manter a calma e a paciência de Aline e das dezenas de desabrigados, a maioria com o fator emocional abalado, são as coordenadoras de assistência social e de saúde, Josiane Ioque e Carolina Bandeira. Elas admitem que a situação é difícil, mas que estão sempre atentas para as questões e que não falta atendimento aos abrigados. “Temos equipe médica durante o dia que faz a avaliação das pessoas, sendo que a prevalência maior é a saúde mental”, explicou Caroline. “Como trabalhamos nos Cras [Centro de Referência em Assistência Social], já estamos um pouco habituados com a situação dessas famílias”, disse Josiane, a Josi, nome mais pronunciado durante o período em que a reportagem esteve na AABB, também para solicitar algo ou para elogiar. O apego maior é das crianças. É comum, por exemplo, ver uma delas sempre de mão com a assistente social. Os idosos também demonstram precisar de muita atenção, tanto que foi um assunto debatido em mini palestras para os grupos de familiares, surgindo como pergunta um dia depois.

Marisa, que mora no início da rua General Osório, teve a casa atingida pelas águas. Foto: Jô Folha - DP


A aposentada Marisa Renata Soares Brito, 67, já foi duas vezes ver como estava sua casa, no início da rua General Osório. Na primeira vez havia água dentro; na segunda não, mas a umidade era muita. Ela adora fazer artesanato como passatempo, mas no momento está preocupada com um cartão de benefício que perdeu quando teve de sair de casa. “É aquele branquinho”, disse ela. Josi explicou então que toda essa assessoria está sendo providenciada. Sobre a comida, as coordenadoras dizem que adoram e que o tempero usado pela turma do Solidariedade é maravilhoso. “Talvez seja por que alguns, principalmente crianças, não estejam acostumados a comer proteína todos os dias, e por isso, possam estar estranhando o cardápio”, observaram as assistentes. Já em relação à segurança, ambas garantem que há sempre um GM local, além dos seguranças do prédio.

Os vizinhos de quatro patas

Um alento para quem teve de deixar suas casas é que os animaizinhos de estimação puderam ir junto para o abrigo. No pátio da AABB, baias foram montadas para abrigar cães e gatos, e a quadra de esporte, com tela, serve para os passeios matinais. Essa ação só está sendo possível graças à ajuda da Clínica Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Os animais são separados por tamanho e temperamento. Em uma sala com filhotes, a energia dos pequenos de quatro patas era de tirar o fôlego. Os maiores e mais ferozes ficam separados. Já os gatos estão bem acomodados em uma sala grande e arejada. Todos devidamente identificados pelos nomes e seus humanos. Os bichinhos estão bem servidos de ração, mas tem os velhinhos que precisam de sachês e de voluntários que lavem as cobertinhas deles. 

Para seus humanos, a necessidade é de moletons tamanhos M e G, principalmente calças masculinas. A AABB fica na rua Alberto Rosa, 580. 

Documentos 

A Defensoria Pública da União (DPU) em Pelotas esteve nas últimas semanas em seis dos oito abrigos mantidos pelo Município. Com isso, 628 pessoas abrigadas tiveram acesso aos serviços da defensoria. Na comunidade mais afetada da cidade, a Colônia Z-3, os serviços da DPU foram em conjunto com outras instituições parceiras, como Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública do Estado e serviços de assistência das faculdades, como UFPel e UCPel. Os atendimentos nos abrigos seguirão até enquanto estes espaços estiverem sendo utilizados.

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