Contra a Aids
A pé, pelo mundo, para prevenir a Aids
Frei Marcelo Bica irá percorrer os cinco continentes ao longo de dez anos; nos últimos dias, o projeto Caminho de Aline está em Pelotas
Carlos Queiroz -
Frei Marcelo saiu de Porto Alegre, pela BR 116 (Foto: Carlos Queiroz - DP)
O trajeto é longo: estende-se por 90 mil quilômetros.O desafio não cabe em uma medida: o frei capuchinho Marcelo Monti Bica cruzará os cinco continentes em uma caminhada programada para durar dez anos. O objetivo: incorporar-se à voz dos portadores do vírus HIV, que quase 40 anos depois da descoberta da Aids seguem esmagados pelo preconceito. Foi o que ele viu ocorrer na própria família: a irmã Aline morreu aos 28 anos, em 2008, sem buscar tratamento nem falar no assunto.
E é para romper com este silêncio que corrói homens emulheres de todas as idades que o religioso, de 40 anos, decidiu sair para a estrada. No Caminho de Aline, Volta ao Mundo a Pé pela Vida e contra a Aids, Marcelo quer interagir com as comunidades. Em Pelotas, faz mais do que isso. O frei ganha a oportunidade de voltar ao passado e reencontrar amigos. Na infância, na década de 1980, ele, a mãe e os irmãos viveram em Pelotas; por duas vezes. Fugiam da miséria. Procuravam desenhar um novo futuro.
“Quando a gente vive na pobreza, não consegue falar de sonho. A gente pensa na dor que tá nos tocando. E hoje o que a gente tem que fazer é lutar para não passar fome ou ser despejado”, relembra.
O frei passou por Pelotas nesta semana e visitou entidades que atendem soropositivos (Foto: Carlos Queiroz - DP)
E enquanto aguardava a chuva dar trégua para poder retomar o roteiro, o porto-alegrense tratou de preencher os dias. Ouviu o desabafo de soropositivos na Organização Não Governamental (ONG) Gesto e levará na memória uma das frases mais emblemáticas da conversa - Dói ser visto como um agente contaminador. Bateu papo com dependentes químicos na Comunidade Terapêutica Caex. Apresentou-se a jovens na praça Coronel Pedro Osório. Visitou a Escola Estadual Doutor José Brusque Filho, onde foi alfabetizado.
E nestes encontros e reencontros, o frei Marcelo Bica fez questão de voltar à mesma casa da rua Conde de Porto Alegre que, por vezes, abriu as portas para o guri, magricelo, entrar. “Talvez, eles não fizessem ideia que, para mim, era muito mais do que tomar um café gostoso, com uma mesa farta. Para mim, era acolhimento”. E foi para agradecer todo aquele carinho, em tempos difíceis, e contar o projeto que tem pela frente, que o frei esteve por lá e deixou um vídeo gravado à família.
Sua proposta é interagir com diferentes públicos (Foto: Carlos Queiroz - DP)
A peregrinação segue
O município de Capão do Leão será a próxima parada, rumo a Bagé por onde irá ingressar no Uruguai. Nas alças do carrinho em que leva a bagagem, uma série de fitas roxas oferecidas por jovens integrantes do Centro Social Marista Santa Isabel, na capital, transforma-se em incentivo para enfrentar a peregrinação.
E, de novo, assim como em 2003 - quando partiu à primeira caminhada - o frei também se alicerça sobre o Salmo 27: Põe teus cuidados em Deus e ele vai cuidar de ti. Quando questionado se o fato de ser religioso o fazia mais preparado para encarar o desafio, Marcelo foi logo ao ponto: “Não. Acho que a minha história de vida, de superação e de sofrimento na infância, quando muitas vezes não se tinha alimento, me faz ter esta coragem”.
E é, exatamente, esta mensagem de que é possível, sim, vencer obstáculos que Marcelo Bica quer proliferar mundo afora. Seja ao ouvir portadores do HIV, que ainda precisam esconder o rosto. Seja ao reunir-se com diferentes públicos para falar em prevenção. E nesses muitos diálogos, o frei irá disseminar uma mesma reflexão: “Está sujeito a contrair o vírus quem vive e quem ama”. Não há espaço para preconceito e estereótipos.
O Caminho de Aline
► Começou no dia 28 de agosto, quando Marcelo Bica completava 40 anos.
► O frei saiu de Porto Alegre, pela BR-116.
► Já passou por Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, Camaquã, Cristal, São Lourenço, Turuçu e chegou a Pelotas
► Daqui sairá em direção à localidade de Passo do Santana, em Capão do Leão.
► Na sequência, vêm os municípios de Cerrito, Piratini, Pinheiro Machado, Candiota, Hulha Negra e Bagé.
► De lá, o frei ruma à cidade de Melo, no Uruguai, onde já tem agenda com estudantes no dia 14 de outubro
Na bagagem, só o essencial
► Poucas roupas: 4 calças (duas que viram bermuda), 2 blusas de manga curta, 2 de manga comprida, 1 moletom, 1 jaqueta, 1 botina, 1 par de chinelos e 1 de sandálias
► Material de higiene
► Alguns itens de cozinha
► 1 barraca e 1 saco de dormir, para os dias em que não puder contar com as acolhidas que irão surgir pelo caminho
► 1 imagem de São Francisco de Assis em feltro
► 1 misto forte de fé e coragem
E daqui a uma década?
A indagação surgiu aos 34 anos, quando o porto-alegrense, formado em Filosofia e Teologia, fazia mestrado em Antropologia, em Paris, na França. E, em meio a uma média de 300 a 500 páginas de leitura por semana, em Inglês e Francês, o frei se perguntou: como será a vida daqui a dez anos? Estava lançada a semente do projeto que agora se torna realidade.
Ao projetar o fim da empreitada, em 2028, Marcelo enfatiza: “Espero fazer a vida mais leve”. E reforça: “Que eu saiba me perdoar, rir de mim mesmo e me abraçar mais. Quero ser uma pessoa melhor”.
Confira outras curiosidades
As bondades no caminho
A rota, prevista para durar 3.650 dias, está recém fechando o primeiro mês, mas já é o suficiente para o frei comemorar o que chama de bondades do caminho. Conheça algumas delas:
► Em São Lourenço do Sul - Ao pisar na cidade, Marcelo Bica dirigiu-se à residência da família que lhe daria abrigo. Ao chegar lá, um dos filhos do casal entregou a chave e avisou que um bilhete indicaria algumas instruções. Foi quando veio a surpresa: Seja muito bem-vindo... Estamos em Santa Vitória do Palmar. Retornamos amanhã. Fique o tempo que for do seu agrado. A declaração de Sérgio e Janine era mais do que acolhida. Tornava-se prova de confiança.
► Em Turuçu - A manifestação de carinho foi expressa pela família de Seu Mello. Era um domingo. E o que não podia faltar? Churrasco. Foi o que pensou o morador de Turuçu, ao deslocar-se até a Igreja Luterana, onde ocorria um churrasco, para oferecer belo almoço ao viajante. Ali, mesmo, na estrada.
► Em Pelotas - A gentileza cruzará os cinco continentes e se transformará em marca do Caminho de Aline. Maria, esposa do amigo de infância Joe Luiz Araújo Júnior, confeccionou uma capa de lona ao carrinho que o acompanhará em todo o percurso. O novo material, mais resistente, e a possibilidade de indicar quantos dias e quilômetros já peregrinou surgiram na nova versão da capa, após os dois dias em que o Diário Popular reuniu-se com o frei. É mais uma delicadeza das tantas que, por certo, ainda virão.
Outras incursões
A primeira caminhada ocorreu em 2003, quando o frei gaúcho saiu em direção à cidade de Nova Trento, em Santa Catarina. Quatro anos depois, foi a vez de partir rumo a Montevidéu, no Uruguai, em um percurso misto: a pé e de carona. “Foi quando vi que era possível encontrar outros mundos.” Em 2011, foi a vez de deslocar-se a Caibaté, na região das Missões. Foram 570 quilômetros percorridos em 17 dias.
Veja como ajudar
Você pode fazer contato com Marcelo Bica de duas formas:
• Pelo e-mail: [email protected]
• Pelo WhatsApp: (51) 98508-6678
Acolhidas são muito bem-vindas. Você também pode contribuir através de doações no valor de R$ 20,00, por mês, durante um ano. A verba irá cobrir as refeições do frei.
Acompanhe!
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