Desalento
Alimento: urgência de quase 30 mil pelotenses
Crise agrava problema da fome e algum grau de insegurança alimentar já atinge pelo menos 120 mil pessoas na cidade
Carlos Queiroz -
“A gente tendo saúde, toma um copo da água e engole.” Essa é a solução de Pamela Rios quando não tem o que comer. Desempregada e moradora do loteamento Barão de Mauá, em Pelotas, há dois anos, ela soma-se aos mais de 27 mil pelotenses que sofrem com a dor da fome, além dos momentos de insegurança alimentar - quando não há acesso pleno e permanente a comida, um almoço sem ter a certeza de conseguir a janta -, aos quais, pelo menos, 120 mil pessoas vivem na cidade.
Os dados citados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), como parte do projeto VigiSAN, utilizados também pela prefeitura de Pelotas. Se para quem lê são apenas números, para Pamela é realidade. E uma situação que já era crítica ficou ainda pior nos últimos dias. Isso porque, na tentativa de uma vida nova, ela, o marido e os quatro filhos foram para Rio Grande para fugir da fome e acabaram enfrentando novas dificuldades.
“A gente foi para lá [Rio Grande] para parar de passar fome. A gente quis tentar lá porque eu já conhecia e como meu marido está desempregado e a gente viu que tinha mais emprego, fomos pra lá”, conta. Porém, o que era para ser um recomeço esperançoso, virou outro grande problema. O quitinete alugado com dificuldades por R$ 600,00 pela família era fruto de ocupação irregular por parte do locador. Sem saber da situação, Pamela foi surpreendida por uma ação policial no local para recuperação do imóvel. Com isso, teve que sair imediatamente, deixando para trás fogão, TV e comida que havia recebido como doação.
“A gente só queria dar umas coisas para os nossos filhos. Meu guri chegou aqui e disse ‘mãe, sabia que o meu amigo ganhou uma roupa do Homem Aranha?’ e perguntou se eu daria uma para ele. Eu disse ‘a mãe vai ver’, não podia dizer não. Mas enquanto estávamos em Rio Grande, ele estava de pé no chão, uma senhora que viu e deu uma sacola de sapato”, lamenta.
Hoje, quatro dos oito filhos moram com Pamela no loteamento. Os outros quatro, maiores, moram com a avó paterna. A separação, apesar de ser apenas física, foi para garantir uma vida melhor, após a mãe ter saído de um relacionamento com violência doméstica com o primeiro marido. “Tive que abrir mão deles porque na época que me separei estava morando basicamente na rua, eu apanhava do pai delas que nem cachorro”, compartilha a vítima, que, infelizmente, é a representação do mapa humano da fome no Brasil segundo o estudo da Rede Penssan: 11,1% dos lares chefiados por mulheres, 10,7% dos lares chefiados por pessoa preta ou parda e 14,7% dos lares chefiados por pessoa com baixa escolaridade estavam passando fome em 2020, quando a pesquisa foi realizada.
“Eu me sinto culpada por não ter forças, me sinto uma inútil e uma infeliz, esse é meu sentimento de verdade. É bem difícil, eu não sei quando vai melhorar isso tudo, ajeitar as coisas, se estabilizar. Dia de chuva isso aqui fica alagado, chove em cima da cama deles também, fomos montando peça por peça com a reciclagem. Tudo que a gente ganhava da reciclagem, a gente foi montando a casa, mas tem que ajeitar”, conta a desempregada, que concilia o Auxílio Brasil, no valor de R$ 714,00, para alimentar as seis bocas em casa e dar uma ajuda para os outros quatro filhos.
Região São Gonçalo é a mais atingida em Pelotas
Quem lida diariamente com situações como essa é o presidente da Central Única das Favelas (Cufa) em Pelotas, Sandro Mesquita. Segundo ele, não há pacto social contra a fome na Metade Sul do Estado. “A gente percebe isso no nosso dia a dia porque a gente está há dois anos na linha de frente, entregando alimento, entregando cartão de transferência de renda. Antes do governo federal fazer a Cufa já estava fazendo para que as mães pudessem comprar uma proteína, um gás, pagar uma conta. Essas lamúrias a gente ouve diuturnamente”, relata.
A Cufa Pelotas atua mais fortemente na região do São Gonçalo, que abrange os bairros Navegantes e Porto, onde, segundo o Instituto Pesquisas de Opinião (IPO), houve o maior impacto econômico/financeiro na cidade: 64,7% da população do local. O item abrange, além das dificuldades financeiras, a perda do trabalho e a dificuldade para trabalhar. Além disso, nesta região 47,1% teve a renda familiar diminuída pela metade ou menos que a metade.
A pesquisa aponta também que cerca de 43,3% dos pelotenses estão vivendo com metade da renda ou menos. A população mais afetada é aquela que tem renda familiar de até dois salários mínimos. O monitoramento do IPO também apontou que o anseio de grande parte dos pelotenses é um projeto de retomada econômica capaz de gerar empregos ou fomentar o empreendedorismo.
Volta ao mapa da fome
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil também traz informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que durante os anos de 2004, 2009 e 2013 revelou uma redução da insegurança alimentar em todo o país. O nível mais baixo até então foi atingido no último ano, para 4,2%, fazendo com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura excluísse o Brasil do mapa da fome.
Entretanto, a Rede Penssan aponta um retrocesso nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, conforme dados da PNAD e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8,0% ao ano. Desde então, houve uma aceleração ainda mais intensa: de 2018 a 2020, de acordo com a VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%. Ou seja, um salto de 10,3 milhões de pessoas em situação de fome para 19,1 milhões.
A pesquisa relata também que a insegurança alimentar não se encontra apenas nas classes em condição de pobreza. Houve também o impacto da pandemia nas famílias com renda estável, que saíram da situação segura. Pelo menos metade dos entrevistados de todo país afirmam ter tido a necessidade de realizar cortes nas despesas essenciais. Em 2019 o índice era de 20,7%, hoje de 34,7%.
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