Série Especial
As marcas do Bahamas, 20 anos depois
O DP traz uma decisão judicial que joga novo olhar sobre o caso: o câncer que matou um dos guardas portuários que atuaram no isolamento do navio
Carlos Queiroz -
Duas décadas depois, o navio Bahamas - que provocou o derramamento de nove mil toneladas de ácido sulfúrico nas águas de Rio Grande - ainda alastra preocupação. Deixa marcas. E não são ao meio ambiente. Uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), proferida no começo deste mês, reconhece que o câncer de laringe que matou um dos guardas portuários - em setembro de 2015 - está relacionado com a exposição à substância química. Difícil mensurar a dimensão dos danos à saúde dos trabalhadores.
Navio só partiu de Rio Grande em abril de 1999, mas deixou muitas perguntas sem respostas (Foto: Carlos Queiroz)
Pelo menos mais quatro profissionais que ficaram de prontidão em barreiras humanas para evitar o acesso à embarcação também morreram em decorrência de tumores na laringe e no pulmão e, em breve, os casos devem chegar à Justiça. A expectativa, entretanto, é de que o número seja bem maior. Levantamento dos próprios servidores públicos indica que aproximadamente 30 guardas que fizeram a guarnição do Bahamas já morreram nos últimos anos. A fase, entretanto, é de busca às famílias para verificação da causa dos óbitos. Um detalhe chama a atenção. Todas as vítimas confirmadas até agora estavam na faixa etária entre 49 e 54 anos. Todos expostos às névoas de ácido que impregnavam o ar com um odor terrível. Até hoje vivo na lembrança dos colegas. O suficiente para provocar desmaios durante escalas longas, de 12 horas. Sem acesso a qualquer tipo de equipamento de proteção. Um retrato do descaso.
O Diário Popular esteve em Rio Grande e conversou com trabalhadores que também receberam diagnósticos de câncer, mas venceram a doença. Fazem apenas acompanhamento preventivo. Em três dias, o DP traz a série Cicatrizes do Bahamas e, entre outros depoimentos, apresenta a palavra de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e a posição da Superintendência do Porto de Rio Grande (SUPRG).
Na Justiça, desafio é ampliar a sustentação científica
Está expresso na decisão judicial: doença ocupacional. O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) reconheceu que o câncer que matou o rio-grandino de 54 anos, em setembro de 2015, está relacionado com a exposição ao ácido sulfúrico. Os desembargadores concederam o recurso por unanimidade e condenaram a SUPRG e o governo gaúcho a indenizar o filho do guarda portuário, no valor de R$ 200 mil, por dano moral.
No acórdão, de 13 páginas, o TRT destaca: ... os reclamados foram negligentes quanto à obrigação de zelar pela saúde e segurança do empregado falecido, cometendo ato ilícito, conforme prevê o artigo 186 do Código Civil [“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”], restando caracterizada a conduta culposa.
Em breve, os advogados Rodrigo Rosa e Zenaide Terezinha Huning devem ingressar com novas ações. E, para dar peso à argumentação fizeram referência a trabalhos da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer e citaram documentos como o
Plano de Vigilância da área interditada, que definia as distâncias que os trabalhadores deveriam permanecer do navio. “Queremos buscar uma tese jurídica de que outros casos de câncer dos guardas portuários, não só os de laringe e de pulmão, já reconhecidos pela Ciência, também estão relacionados à exposição do ácido sulfúrico”, ressalta o advogado. E foca-se em contato com médicos oncologistas.
Dor e indignação
O jovem de 30 anos conversa com o Diário Popular, mas prefere ter a identidade preservada. O tom é de desabafo. Filho único, o estudante de Odontologia não pôde contar com o “Parabéns” do pai, ao conquistar a vaga na UniSociesc, em Florianópolis (Santa Catarina), há poucos dias. Vários sonhos ficaram para trás. Não houve tempo para persegui-los. Desde que recebera a confirmação da doença do pai, os dois procuraram compensar os anos que ficaram afastados. Mas foi tudo muito rápido.
O câncer de laringe arrasou com qualquer possibilidade de o guarda portuário manter as atividades com que tanto se divertia nos momentos de lazer. Acampar com os amigos, um belo churrasco, um jogo de sinuca nos barzinhos da vila onde morava, em Rio Grande. São apenas lembranças. “É um dano irreparável”, resume o filho.
As empreitadas de 12 horas para garantir que o navio Bahamas permanecesse isolado também estão vivas, através da memória de diferentes trabalhadores. Uma das barreiras ficava a apenas 50 metros da popa da embarcação. E, em alguns momentos, o pai chegou a estar dentro do Bahamas - conta o jovem. “Ele tinha que entrar para acompanhar o pessoal autorizado”, explica. E torce para os outros casos também receberem o reconhecimento da Justiça; ainda que a indenização não elimine a dor.
Está no acórdão: ... A jurisprudência trabalhista admite, de forma uníssona, que o filho do ex-empregado, falecido por acidente de trabalho ou doença ocupacional, é parte legítima para pleitear indenização por dano moral em nome próprio, em decorrência do abalo moral, angústia e sofrimento causados pela morte do ente familiar.
Alerta é feito por órgão ligado à OMS
O estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, vinculada à Organização Mundial de Saúde (OMS), é claro: ... Há evidências suficientes em seres humanos quanto à carcinogenicidade das névoas a partir de ácidos inorgânicos fortes - o que inclui ácido sulfúrico. As névoas de ácidos inorgânicos fortes causam câncer de laringe. Além disso, uma associação positiva foi observada entre a exposição a névoas de fortes ácidos inorgânicos e câncer de pulmão.
É um dos trechos destacados no material ao que o Diário Popular teve acesso, ao conversar por e-mail com a diretora-geral da Agência, a epidemiologista Elisabete Weiderpass Vainio; a primeira brasileira a assumir o comando da AIPC. Em outra pesquisa, a avaliação geral também vai direto ao ponto: A exposição ocupacional a névoas de ácido inorgânico forte contendo ácido sulfúrico é carcinogênica para os humanos (Grupo 1).
Relembre
O navio Bahamas, de bandeira Malta, chegou a Rio Grande na segunda-feira, 24 de agosto de 1998. A embarcação com 26 tanques para o transporte de cargas químicas perigosas estava carregada com 19.616,3 toneladas de ácido sulfúrico. O produto tinha um destino: as empresas de fertilizantes. Problemas de pressão nas bombas ocasionados por um erro humano, durante a operação de descarga, fizeram com que parte do ácido em concentração acima de 95% passasse a receber água de lastro; a água do mar captada para garantir segurança operacional e estabilidade ao navio. Começava ali, diante de uma reação química violenta, uma história que até hoje, 20 anos depois, deixa marcas. Dor. E morte.
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