Sociedade

As relações em um mundo pós-pandemia

Em um período de incertezas, sociólogos destacam elementos que podem ser alterados nas relações sociais em decorrência da Covid-19

Carlos Queiroz -

Por Daniel Batista - [email protected]
(Estagiário sob supervisão de Débora Borba)

A pandemia do novo coronavírus ainda é motivo de muitas incertezas. Na sociedade, além das dúvidas, o período serviu para a prática de movimentos solidários, como a arrecadação de alimentos ou mesmo o oferecimento de ajuda para ir a estabelecimentos, que surgiram em diversos locais do Brasil. Uma das perguntas que ainda se encontram sem resposta é: como será a sociedade em mundo pós-pandemia? Entre as projeções feitas por sociólogos, está a de que poderá haver mudanças nas relações entre as pessoas, no consumo e também no modo de trabalho. O período também poderá contribuir para o fortalecimento de laços, seja entre familiares, amigos, e servir de motivador para a continuidade de ações de ajuda mútua, confiança e respeito ao próximo. Em uma analogia com o simbolismo da Páscoa para os cristãos, oportunidade de renovação e de esperanças.
“O que, seguramente, dá pra dizer é que as coisas não serão como elas eram há um tempo”, projeta a socióloga Simone Gomes, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ela lembra que os períodos de surgimento e enfrentamento de outras doenças, previamente, foram seguidos de momentos de mudança, como a reorganização da sociedade após epidemias como a da Sars-CoV, em 2003, a H1N1, em 2009, e outras, como o sarampo. Dessa forma, o período que segue poderá ser de maior atenção a fatores que eram, de certo modo, despercebidos.

Desde as primeiras medidas de isolamento adotadas em municípios e estados, ações como a arrecadação de alimentos e a disposição de jovens em realizar atividades para pessoas com mais idade, ganharam espaço em sites de redes sociais e na imprensa. Essas iniciativas, conforme Simone, são favorecidas pela rápida difusão de práticas e conhecimentos devido à internet. “É a crise, em grande medida, que lança à luz essas práticas, atualizadas, mas sempre presentes segundo o contexto histórico”, afirma, destacado que essas ações não são exclusivas desse momento, com ocorrências, também, em outros períodos de inflexões civilizacionais. Como exemplo, ela lembra de ações que ocorreram durante a crise econômica vivida pela Grécia a partir de 2008, como iniciativas de apoio mútuo, hortas comunitárias, financiamento e crédito popular. “É importante dizer que isso já existia, a Covid só desvela o quanto a gente estava anestesiado, o quanto a ajuda mútua estava anestesiada por práticas que nos afastavam rigorosamente”, conta. Para a socióloga, no entanto, as ações não substituem o dever do estado, no sentido de guardar os cidadãos e prover condições de saúde, habitável e educação, por exemplo. “Essas iniciativas são bacanas, e a gente espera que elas perdurem, mas não dá pra substituir nada em termos de larga escala, em termos de Estado.”

Nesse sentido, no período pós-pandemia, Simone projeta que pode haver efeitos benéficos, em relação à organização do tecido social. “A questão da gente se ajudar mutuamente em escala menor, entre vizinhos”, exemplifica. Além disso, ela aponta que o período de permanência nas residências pode contribuir, também, para um redescobrimento de relações com a ancestralidade, com familiares. Por outro lado, o fechamento de fronteiras pode acentuar questões de racismo e xenofobia. Como consequência, o deslocamento também poderá ser afetado, promovendo um repensar no aspecto de viagens e da utilização de recursos virtuais para execução de tarefas de trabalho.

Mudanças no ambiente de trabalho
Esse último aspecto também é retomado pelo o sociólogo Flávio Sacco, docente permanente do PPG em Sociologia da UFPel e que atua como professor visitante no Instituto de Estudios Sociales Avanzados em Córdoba, na Espanha, um dos países mais afetados pela pandemia. Para ele, o trabalho a distância pode ser reforçado, devido a uma mudança no comportamento pessoal, com uma preocupação em relação a novas enfermidades, que podem atingir o trabalhador nas ruas ou mesmo em locais de trabalho. “Poderemos viver um novo ciclo em que cada vez mais as pessoas optem por trabalhar em casa”, afirma Sacco.

Para ele, o desemprego também poderá atingir as pessoas em grande medida, de forma que a participação do Estado, promovendo condições mínimas, como uma renda básica, será essencial, também para a recuperação do país. “Nunca, na história da humanidade, se viveu uma situação similar”, afirma Sacco, citando que a situação pode ser assemelhada às vividas durante as duas grandes guerras.

Nesses conflitos, no entanto, ele lembra que parte dos países foi afetada de forma indireta, ao contrário do que acontece atualmente, com situação de paralisia das atividades econômicas, das atividades produtivas, interrupção de ciclos e cadeias de produção, e de outras atividades e setores. “Isso tudo vai sofrer um processo muito profundo, porque se trata de uma doença, de uma realidade, que expõe uma crise de valores”, afirma em relação à aquisição de bens conspícuos, supérfluos. Dessa forma, ele destaca que pode haver uma reflexão quanto ao consumo, com a consideração da relevância e a necessidade de bens materiais, como automóveis, roupas e joias, no momento em que se pode precisar de um equipamento como um respirador. “De que servem todos esses bens conspícuos se de repente não temos uma saúde pública capaz de absorver uma quantidade enorme de pessoas que afluem a esses ambientes em busca de salvar sua própria vida”, complementa.

Solidariedade e aproximação
Em todo o mundo, 212 países, áreas ou territórios já foram afetados pela Covid-19, com mais de 1,3 milhão de casos e mais de 76,3 mil mortes, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse cenário de guerra, como aponta o sociólogo, causado pelo avanço do novo coronavírus, desperta sentimentos profundos nas pessoas, como o medo da morte, e o confronto com uma realidade chocante, desencadeando processos de solidariedade, como redes de apoio ou troca. “Mas é uma solidariedade que vem da nossa condição de humanos, alguns, mais do que outros, que vão se expor, e já estão se expondo, pra tentar salvar os mais frágeis da nossa sociedade”, afirma. O professor salienta, no entanto, o fato de a sociedade brasileira ser desigual e preconceituosa, de forma a considerar, em alguns casos, a desigualdade social como questão natural. “É uma situação que realmente poderá trazer de volta comportamentos que a gente imaginava que não mais existiam”, projeta Sacco. Assim como Simone, o sociólogo lembra que, apesar de benéficas, essas ações não podem ser vistas de forma a substituir o papel e a ausência do Estado, de modo a fornecer serviços básicos e condições para a sociedade.

O isolamento e a constante utilização de meios digitais para a comunicação também podem ser motivadores de um processo extremo de estresse, devido à ausência de contato próximo. “Nós somos seres gregários, e nós precisamos trocar afeto”, afirma Sacco. Ele lembra, como exemplo, de depoimentos de conhecidos, na Espanha e no Brasil, que nunca haviam trocado palavras com os respectivos vizinhos, e que passaram a ter maior contato neste momento, devido à necessidade de organização de atividades coletivas nos edifícios onde residem. Dessa forma, ele projeta que as relações, em um cenário pós-pandemia, podem ser motivadas a uma maior aproximação. “Talvez isso também sirva como uma demonstração de que não somos ilhas isoladas, que nós precisamos conviver, que nós precisamos nos ajudar mutuamente e precisamos exercer essa alteridade, a capacidade de se colocar no lugar dos demais, de tentar construir relações baseadas na confiança, no respeito e, de certa maneira, também diminuir a carga de preconceito que a gente tem, todos temos em relação aos demais”, acredita.

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