Série Especial
Guardas portuários durante o Caso Bahamas desabafam
Sem se identificar, trabalhadores falam no drama de enfrentar o câncer que também garantem estar associado com a exposição ao ácido sulfúrico
Carlos Queiroz -
As cicatrizes são literais. Transformam-se em prova de resistência. Sobrevivência. Neste último capítulo da série de reportagens sobre os 20 anos do Caso Bahamas, o Diário Popular traz o relato de guardas portuários que cumpriram a tarefa de isolar a embarcação enquanto corriam pelo cais dúvidas e debates sobre o que fazer com a carga tóxica. Hoje, dividem-se entre agradecer que venceram o câncer e reunir documentação para também tentar, na Justiça, o reconhecimento de que os tumores estavam associados com a exposição ao ácido sulfúrico.
Uma indagação ainda retumba. Alto. Havia alguma outra substância perigosa no navio? Símbolos de material radioativo em portas lacradas, até hoje, preocupam - admitem os trabalhadores. Ao conversar com o Diário Popular, em Rio Grande, pedem para não ser identificados. Temem represálias. E torcem para ser indenizados pelas escalas de trabalho que saltaram de oito para 12 horas, sem qualquer equipamento de proteção. Nem máscaras.
Os guardas só tiveram acesso a rádios VHF para receber ordens dos superiores. E, não raro, entravam no Bahamas para conduzir pessoas autorizadas. “A gente ficava com cansaço no corpo e ânsia. Quem procurava ajuda médica e precisava se afastar, não era liberado. Diziam que não tinha ninguém para substituir”, relembra um dos guardas, em carta de quatro páginas escritas à mão e entregue ao DP.
Não havia outro jeito. Proibidos de se afastar do local, rápido, precisavam se recuperar de vômitos - e até desmaios - para retornar às barreiras humanas. Uma delas instalada a cerca de 50 metros do navio. 24 horas por dia. Não havia intervalo para almoço nem para café. A referência para as refeições era uma guarita de madeira, de dois metros quadrados, com fogão de duas bocas e uma botija de água. Só depois ganharam um contêiner equipado com cadeiras.
O sentimento era de pressão. Um misto de falta de informações sobre o que efetivamente ocorria dentro da embarcação e de receio de que, a qualquer momento, uma explosão ganhasse grandes proporções no Porto Novo.
A cada novo diagnóstico, mais certeza
A cena tem se repetido nos últimos anos. Pelo menos cinco guardas portuários que atuaram no isolamento à embarcação morreram de câncer de pulmão ou de laringe. A doença, entretanto, atingiu outros trabalhadores e outros órgãos: boca, garganta, pele, sistema linfático... “Tô batendo palma que tô vivo”, resume um dos trabalhadores, já curado. E, juntos, contam que a cada diagnóstico confirmado cresce o medo entre os colegas.
Exames, punções, biópsias, cirurgias, sessões de químio e de radioterapia. Marcas pelo corpo e sequelas. Efeitos que permitem afirmar com força: “Me escapei”, reitera o guarda, que derrotou a doença duas vezes. E ao recorrer a fotos antigas, tiradas durante os plantões, logo encontra pelo menos dois servidores dos que já morreram. “Vencer estas ações na Justiça, agora, é como vingar a morte dos nossos colegas.”
Segue o rastro de mistérios
Duas décadas não foram suficientes para vir à tona o que haveria de tão valioso no Bahamas. Seis dias depois de deixar Rio Grande, em 26 de abril de 1999, o navio passava a ser procurado pela Interpol (Polícia Internacional), com suspeita de carregar drogas ou joias. A destruição de vários compartimentos, para supostamente aliviar o peso durante o processo de remoção, acabou por levantar as primeiras dúvidas, já que os destroços permaneceram na embarcação.
A Polícia Federal (PF) chegou a divulgar fotos de uma inspeção, em que aparecia um fundo falso na cama do comandante, o ucraniano Volodymir Kisnicham, condenado a pena de 18 meses de detenção pelo crime de sinistro marítimo culposo. A Autoridade Marítima Brasileira emitiu comunicado internacional para alertar que o Bahamas representava sério risco à segurança da navegação e ao meio ambiente marítimo.
Afinal, ao ser rebocado do Porto - onde permaneceu atracado por 233 dias -, o navio de bandeira Malta seria afundado. Era o que estava programado. O local tinha sido detalhadamente estudado, para evitar prejuízos à circulação de embarcações e danos aos cardumes. O afundamento ocorreria a 250 milhas da costa de Tramandaí, no Litoral Norte, em águas internacionais, a 3,1 mil metros de profundidade.
Mas, não foi o que ocorreu. Mesmo com problemas no casco e no motor, depois de mais da metade do percurso percorrido e de dez horas de negociação, a operação foi transferida para o rebocador Salvage Giant, contratado pelo proprietário do navio. Cresciam, portanto, as suspeitas do interesse em resgatá-lo. Surgiam também várias hipóteses de destino: África, países da América do Sul e Europa.
Só um ano depois teria sido encontrado na costa da Nigéria, abandonado como sucata. E seguem as especulações. Há quem diga que tenha sido recuperado e rebatizado. Agora seria o Oriental Flowers. No imaginário de quem o viu jorrando o que depois seria confirmado como ácido sulfúrico, e correu para comunicar a Marinha, naquele 30 de agosto de 1998, as suposições seguem: “Dizem que carregava pedras preciosas”, afirma o guarda portuário.
A posição do Porto
O Diário Popular ficou sem resposta da Superintendência do Porto de Rio Grande (SUPRG) a todos os questionamentos. Por e-mail, a Assessoria de Imprensa da Secretaria Estadual de Transportes e Mobilidade, em Porto Alegre, confirmou ter recebido a demanda, mas já adiantava na manhã de quarta-feira que, possivelmente, as indagações não fossem esclarecidas a tempo.
As queixas dos trabalhadores quanto à falta de acesso a equipamentos de proteção; o possível recurso à decisão judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), que reconhece que o câncer de laringe que matou um dos guardas portuários tem relação com a exposição ao ácido sulfúrico, e as adequações às exigências do Ministério Público do Trabalho (MPT). Tudo sem resposta.
A atuação do MPT
O Ministério Público do Trabalho aguarda que a SUPRG comprove a instauração de procedimentos internos que garantam as sanções aos casos de irregularidades em segurança e saúde do trabalho, sob pena de multa no valor de R$ 3,2 milhões. Desde 2010, o MPT acompanha a situação e ingressou com ação civil pública para cobrar que a Superintendência exigisse e fiscalizasse o uso de equipamentos de proteção individual adequados e com certificado de aprovação, além de implementar rotina de fiscalização das operações portuárias e aplicar sanções aos operadores que desrespeitassem a Norma 29, que trata da segurança no trabalho portuário.
De lá para cá, várias inspeções foram realizadas pelos peritos e a SUPRG ganhou prazo para apresentar plano de ação para cumprimento da decisão. E, embora tenha comprovado a contratação de técnicos de segurança do trabalho, para atuarem ao longo das 24 horas do dia, não ficou claro quais medidas têm sido adotadas quando constatadas irregularidades - conforme indicaram relatórios apresentados em 30 de maio deste ano.
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