Mudança
Nova rotina, novos hábitos
Pandemia promoveu alterações na dinâmica de setores do município, com consequências no convívio familiar e intensificação do uso de tecnologias
Em todo o mundo, são mais de 4,6 milhões de pessoas infectadas com a Covid-19 e mais de 315 mil mortes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em Pelotas o primeiro caso foi registrado em 25 de março, e cinco dias antes um decreto da Prefeitura já havia restringido a abertura de estabelecimentos comerciais. Dois meses após, já houve uma retomada gradual e controlada em alguns setores, no entanto, a rotina da cidade segue diferente. O Diário Popular conversou com pessoas de diferentes setores do município, que relataram como a pandemia modificou o trabalho e as relações com amigos e familiares.
A enfermeira Lauren Ferreira, 35 anos, atua no setor de WebSaúde do Hospital-Escola da UFPel e passou a adotar o uso constante de álcool gel. Ao chegar em casa, roupas na máquina de lavar e a ida direto para o banho. As ações têm o intuito de proteger a mãe, de 62 anos, com quem mora. À noite, as aulas ministradas em uma instituição de ensino superior sofreram mudanças e o contato com os alunos passou a ser feito via internet. “É uma coisa que te afasta muito dos alunos. Muda toda a forma de fazer o ensino”, complementa.
A mudança na forma de ensino também esteve presente na rede estadual. “Nós tivemos que nos reinventar”, afirma Maria de Fátima Souza, diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental Rachel Mello. Ela conta que desde março, quando houve a interrupção das aulas presenciais, a escola, que conta com 526 alunos do 1º ao 9º ano, passou a fornecer atividades, de forma online e impressa, àqueles sem acesso à internet. Em alguns casos, as atividades eram levadas nas residências mais distantes. A comunicação com os pais é mantida por grupos em aplicativos de mensagens e também na página da escola em uma rede social. Apesar das dificuldades e resistências iniciais com as tecnologias, Maria conta que os conteúdos passaram a ser desenvolvidos. “Os professores começaram a fazer vídeos e a pensar aulas diferentes”. A proposta, segundo ela, despertou o engajamento dos docentes e também dos alunos, sendo positiva e promovendo uma aproximação dos pais com a escola e também com os alunos. “Mas nada supera a relação interpessoal, a gente sente saudade do contato com a escola, do convívio, das crianças”, lembra. No momento, alunos e professores estão em férias, que foram antecipadas do mês de julho.
Duas das crianças que participaram das atividades foram Kauã Ortiz, de 11 anos, e Camile Ortiz, de 9 anos. A mãe, Ivonete Wickboldt, conta que, no início, os filhos passaram a perguntar sobre a nova realidade. “Eles começaram a questionar: quando iriam voltar às aulas, porque eles não poderiam brincar com os amigos”, lembra Ivonete. Com a disponibilização dos conteúdos via internet, ela também necessitou aprender sobre o que estava sendo passado, de forma a ajudar os filhos na compreensão das atividades. Também mãe de um menino de três anos, Ivonete tenta manter a rotina de estudos de acordo com os horários que eles iriam para a escola, nos períodos da manhã e à tarde.
A interrupção das aulas presenciais também motivou o pequeno Bernardo, de quatro anos, a ficar aos cuidados da avó durante o período em que os pais estão trabalhando. Antes de buscar a criança, o pai, Lucian Ferreira, que também é do grupo de risco da doença, por ser hipertenso, adota cautela, e antes passa em sua residência para tomar banho e colocar as roupas utilizadas durante o dia direto na máquina de lavar. “A gente está tomando todos os cuidados”, afirma. Já na residência, a hora é de aprendizado. “A gente está ensinando as coisas pra ele aqui em casa, tentando manter a cabeçinha dele ativa, trabalhando”, conta, citando a afeição de Bernardo por letras e números. Antes da pandemia, Ferreira atuava com a locação de brinquedos infláveis e também em um laboratório de análise químicas, realizando a coleta de amostras de água para análise. Ambas foram afetadas, com diminuição nas demandas, com a primeira totalmente. “É uma coisa que ninguém sabe o prazo, isso é o que mais assusta”, diz, destacando que demonstra otimismo quanto à passagem da pandemia. Em momento posterior, ele espera que a colaboração entre as pessoas permaneça.
Adaptações na economia
Proprietário de um bar e uma distribuidora de gás, Lázaro Amaral, 50 anos, afirma que os dois estabelecimentos registraram prejuízos. Antes da pandemia, o primeiro local costumava registrar grandes movimentos de clientes, o que demandava a contratação de oito a dez funcionários pontuais em alguns dias, entre seguranças e garçons. Atualmente, no entanto, três funcionários, com carteira assinada, foram mantidos, com 30% da remuneração sendo pagos por Lázaro e outros 70% pelo governo federal. Contas de aluguel e de energia elétrica já estão atrasadas e o prejuízo, até o momento, já é de cerca de R$ 31 mil. “Vou precisar de adaptações, futuramente, para pagar as dívidas”, afirma, citando a necessidade de criação de outros segmentos. Um destes é o serviço de tele-entrega de almoços, iniciado há cerca de 15 dias, que, por enquanto, segundo ele, ainda não vem gerando rendimentos. No outro estabelecimento em que Amaral é proprietário, as vendas também caíram em cerca de 50%. A queda no setor também afetou Luan Furtado, 21 anos, que trabalhava como atendente em um bar do município. O salário, conta, servia para complementar a renda da família. “Eu ajudava a minha mãe em casa e agora é só ela que segue mantendo, pois ela trabalha de carteira assinada”. O jovem não conseguiu pegar o auxílio emergencial e, no momento, realiza alguns trabalhos pontuais, como no auxílio em mudanças. “Eu acho que é completamente certo, mesmo que me afete, eu tenho que ter noção de que é uma coisa para o nosso bem”, afirmou Luan, em relação às medidas de isolamento social.
Ações para proteger os mais próximos
Daniel de Souza, 43 anos, trabalha como motorista da coleta orgânica no município. Por conta da diminuição dos horários dos ônibus e também para evitar aglomerações, têm utilizado seu carro para ir até o local de trabalho. “Até mesmo para me afastar um pouco mais das pessoas, porque tu não sabe quem tem ou quem não tem o vírus”. No dia a dia, máscaras e álcool gel passaram a ser companheiros durante o trabalho que agora passou a ser exercido em quatro dias na semana. “A gente tem o álcool pra higienizar tudo por dentro do caminhão”, afirma, lembrando que a medida é realizada com frequência. E são essas medidas de prevenção, segundo ele, que contribuem para a proteção da esposa e da filha, que permanecem em casa. “Eu como trabalho, tenho que me proteger em dobro, pra não levar nada para dentro de casa”, diz Daniel. A expectativa dele é que as coisas possam melhorar. Para isso, salienta, deve haver uma maior colaboração de todos: da população, respeitando as medidas de proteção, e das autoridades, quanto à fiscalização.
“[A pandemia] exigiu que a gente se reestruturasse, se resinificasse e se rearranjasse no que a gente faz”, afirma a enfermeira Susana Cecgano, que trabalha no setor de Gestão da Qualidade e Vigilância em Saúde do HE, na coordenação do gerenciamento assistencial de ações de vigilância epidemiológica e em saúde da instituição. “O principal impacto foi a questão do medo, que a gente carrega, de levar essa doença pra nossa família, pra quem a gente ama”, relata Susana que é casada e mãe de três filhos. Além do uso de EPI durante as cerca de dez horas de trabalho, a pandemia também mudou a rotina da enfermeira em casa. “Hoje eu tenho dificuldade de dar um beijo nas crianças, de abraçá-los... eu evito de fazer isso”, conta, emocionada, lembrando que também procura manter certo distanciamento deles e que busca explicar a situação por meio de conversas. O medo de levar a doença para a família também está presente durante o dia a dia da operadora de caixa Ana Cláudia Barcelos, 30 anos, que trabalha em um supermercado de Pelotas. No local, ela afirma que a utilização de equipamentos de proteção, como máscaras, luvas e óculos, além da frequente higienização das mãos e do local onde permanece contribuem para uma maior segurança. Ao chegar em casa, no entanto, afirma que vem evitando ter contato direto com a filha, de oito anos. “Tive que explicar para ela a situação, mas ela entendeu”, conta.
Em parte dos serviços que realizavam atendimento direto ao público, a tecnologia contribuiu para que as funções fossem realizadas sem contato. “Nunca passamos por uma situação assim”, diz a chefe de atendimento do Sanep, Marisa da Cruz, que trabalha há oito anos no setor. Ela lembra de ocasiões em que parte do serviço precisou ser interrompida por horas ou em até um dia. “Mas nada além disso”, destaca. Por conta da pandemia, a autarquia passou a atender as demandas da população somente por telefone, whatsapp ou redes sociais. “Os nossos servidores precisam de cuidados e a população também”. Dessa forma, 14 dos 21 funcionários do setor estão atuando em home office e sete permanecem em regime de plantão na autarquia, com o cumprimento de medidas de segurança, como o distanciamento, utilização de máscaras e o uso de álcool gel. Cerca de 300 atendimentos já estão sendo feitos na nova modalidade, entre 400 a 500 eram feitos presencialmente. “Nesse momento a gente teve que se reinventar”, declara Marisa.
Atendimentos médicos via internet
A utilização de plataformas como aplicativos de mensagens de texto, áudio e vídeo também foi incorporada em parte dos atendimentos médicos. “É uma ferramenta”, afirma o médico de Família e Comunidade Tiago Mass. Desde meados de abril, ele passou a atender os pacientes de seu consultório particular utilizando a telemedicina que, segundo ele, pode ser utilizada em consultas que vão desde a visualização de exames até a realização de parte dos atendimentos clínicos que possam ser resolvidos com uma conversa. Em casos graves, no entanto, a presença do paciente pode ser solicitada. Recentemente, Mass também passou a utilizar a modalidade na Unidade Básica de Saúde do Areal, onde também atua, devido à disponibilidade da prática nas seis Unidades Básicas de Saúde administradas pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Conforme o médico, o resultado é positivo e a expectativa é de que a prática, que já estava consolidada em outros países, possa permanecer no Brasil. “Eu torço para que fique”, afirma.
Shows agora são de casa
Com o isolamento social, a possibilidade de realizar transmissões ao vivo em plataformas como as redes sociais tornaram-se uma ferramenta de divulgação do trabalho e interação para Lise Peres, 32 anos, que cursa o quinto semestre do bacharelado em Música Popular, na UFPel. Antes da pandemia, a gravataiense costumava tocar em bares e locais de Pelotas, como uma complementar renda, nos períodos livres entre as aulas do curso integral. “Esse ano eu já tinha algumas datas marcadas, que foram canceladas”, conta, lembrando que o plano era o de tornar a música a sua principal fonte de renda. Para isso, a estudante já havia, inclusive, saído de um emprego no comércio. Com o início da pandemia, no entanto, Lise passou a receber o auxílio emergencial e começou a participar de lives e festivais online para arrecadação de renda, que conta com a participação também de outros artistas. “É uma troca muito boa mesmo, porque aquilo que a gente está produzindo em casa a gente quer compartilhar, não faz sentido a gente estar fazendo arte para a gente mesmo”, observa, ressaltando a importância da arte na pandemia. Sobre projeções para o futuro, Lise afirma que prefere pensar em realizar ações para o momento “Fazer as coisas aqui e agora”, finaliza.
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