Pandemia

O Fique em casa evidencia as desigualdades

Entre novas moradias e reformas, mais de 33,7 mil famílias precisariam receber investimentos para viver em espaços dignos, aponta UFPel

Jô Folha -

O apelo para que o distanciamento social permaneça reverbera, de uma ponta a outra do país. O novo coronavírus é agressivo: já matou mais de dez mil pessoas no Brasil. Mas a violência não é apenas da Covid-19. Exigir que o pedido de “Fique em casa” seja acatado também pode ser encarado como ato de violência extrema - e não para poucos. Só em Pelotas, mais de 33,7 mil famílias precisariam receber investimentos em habitação, para morar com dignidade.

Seja para superar o déficit - quantitativo - e erguer novas moradias, sem improvisos. Seja para superar os mais variados tipos de precariedade. Da ausência de banheiro à falta de água. Do excesso de moradores à falta de coleta de lixo. É o que aponta uma projeção realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas (Naurb-UFPel) para o ano de 2020.

As mensagens sobre a importância do uso de máscaras e de álcool em gel e de redobrar hábitos de higiene podem chegar como afronta a quem não tem o básico. E não agora, durante a pandemia. São anos de espera para ter o direito constitucional atendido: um lar decente, para poder seguir em frente.

“O que o Poder Público, de modo geral em todo o país, não se dá conta é que investir em política habitacional traz reflexos, principalmente, à saúde”, defende o arquiteto Cassius Baumgarten, com oito anos de atuação em habitações de interesse social. “Moradias saudáveis promovem famílias saudáveis”, reforça. E não esconde a preocupação com os efeitos da Covid-19, caso disseminada em áreas periféricas, em que os cuidados com o isolamento se tornariam absolutamente impraticáveis em casas, não raro, de um único cômodo.

" A gente vai se virando como pode"
Os dias são cercados de incerteza. As jovens viram desaparecer as chances de trabalho. A rotina como diaristas passou a ser substituída pela busca - minguada - por recicláveis. “A gente vai se virando como pode”, reforça Suelen Moura Dias, 27. E lembra do compromisso em alimentar os filhos, de 13 e de três anos de idade.

A família conseguiu o auxílio emergencial de R$ 600,00, mas a dúvida sobre como ficarão os próximos meses até que o dia a dia possa voltar à normalidade, não permite traçar planos. O olhar direciona-se a questões básicas. Imediatas. E espantar o frio, no chalé, erguido nos fundos da casa da amiga, é uma das prioridades.

“Aceitamos cobertas. Aqui é um baita frio”, resume a moradora da Estrada do Engenho. Será mais um inverno sem direito a banho de chuveiro. “Nosso banheiro tem vaso, mas o banho é de balde”, conta.
Na casa de Heloísa Helena Gonçalves Dias, 53, as notícias do novo coronavírus chegam pela TV, mas a principal preocupação mesmo é manter o salário. “Trabalho na limpeza de escolas, mas como elas estão fechadas, não tenho certeza se vão querer nos pagar daqui pra frente”, afirma.

O marido morreu há cerca de cinco meses. A filha está desempregada e é da renda de Heloísa que vem o principal sustento da família, que ainda inclui um filho de 14 anos e três netos. “Temos nos protegido como dá. Usamos máscaras se vamos ao Centro”, exemplifica.

Qual a possibilidade real de ficar em casa?
A reflexão é complexa. As respostas não estão guardadas somente no impacto do novo coronavírus ou mesmo da crise econômica que já se alargava no Brasil. O cenário tem raízes históricas, que passam por desigualdade social e violação de direitos. Quem faz o chamamento é o assistente social Nino Rafael Kruger, que assina artigo escrito em parceria com o arquiteto Cassius Baumgarten.

Ao conversar com o Diário Popular, o doutorando em Política Social e Direitos Humanos na Universidade Católica de Pelotas (UCPel), é enfático: “Não é verdade que a pandemia irá tratar todos de forma igual. O vírus não é democrático”, sustenta. E faz um apanhado que cruza séculos. Da chegada da Corte Portuguesa e sua comitiva ao Brasil, em 1808, à Lei de Terras, em 1850. Dos pós-abolição, a partir de 1888, à proibição dos cortiços no início do século 20. De pactos e acordos internacionais assinados pelo Brasil a partir da década de 1940 até a criação das Cohabs, nos anos 1960. São análises que chegam aos dias de hoje.

“As legislações sempre foram sendo criadas para que o mercado privado pudesse produzir, comercializar e regular este mercado”, critica. E neste contexto de especulação imobiliária, o peso da exclusão se manteve sempre sob os mesmos grupos. Até hoje, mesmo quando construídos Residenciais voltados à comunidade de baixa renda, os imóveis carecem de infraestrutura ao redor, como escolas e Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Sem falar em outras melhorias, em áreas como calçamento, iluminação e saneamento básico da região.
Afinal, moradia digna não se resolve apenas com a construção de prédios - destaca a dupla.

A posição da prefeitura
O secretário de Habitação e Regularização Fundiária, Ubirajara Leal, admite que, assim como na maioria das cidades brasileiras, Pelotas não possui política municipal para construção de moradias. Neste momento, também não existe nenhum projeto federal do Minha Casa, Minha Vida em andamento ou previsto para começar, em Pelotas, dirigido ao público de baixa renda - Faixa 1.

Para amenizar a situação de quem precisa fazer reformas de todos os tipos - de telhado a piso; de instalações elétricas a esquadrias; de ampliações em quartos a acessibilidade -, a prefeitura criou o Banco de Materiais. O trabalho, realizado em parceria com a equipe da Defesa Civil, deverá ser ampliado com apoio da população. O secretário não chegou a divulgar valores já injetados ou previstos para investir no programa ao longo de 2020.
Uma segunda ação - ainda sem data para entrar em vigor - deverá garantir assistência técnica para as obras. A Secretaria irá firmar convênio com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, para levar orientações às famílias. “A nossa ideia era ter firmado este acordo no final de março, mas em função da pandemia não conseguimos viabilizar”, justifica-se Leal.

Saia mais
Como ser contemplado com a entrega de materiais de construção? O cidadão deve ter cadastro junto à Secretaria de Habitação. Também está prevista a visita de assistente social e de integrantes da Defesa Civil. Uma comissão interna avaliará o caso e precisa aprovar a entrega.

População pode fazer doações: Os interessados em doar materiais de construção podem fazer contato com a Secretaria de Habitação pelos telefones (53) 3225-0182 e 3225-0183. Uma equipe encarrega-se de buscar a doação.

Acompanhe os debates
O Observatório de Conflitos da Cidade irá realizar nova live na terça-feira, às 19h, para debater o tema Violência e desigualdade no acesso a direitos sociais. As discussões ocorrem pela rede social, através do facebook.com/ConflitosdaCidade. O debate também conta com o apoio do Grupo de Estudo e Pesquisa Questão Agrária, Urbana e Ambiental da UCPel.

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