Dependência
O problema crescente do crack na Z-3
Reflexo da situação precária da localidade é o crescente uso do crack, substituto do álcool como “companheiro” de pescadores e pescadoras para enfrentar o frio e o medo
Paulo Rossi -
É parecida com o devagar balanço dos barcos na Lagoa dos Patos a demora até que algo chegue à Colônia Z-3. Enquanto se espera, por exemplo, pelo camarão, que não tem vindo, se anseia pela vinda de mais educação, saúde, cultura e pelo aumento no seguro-defeso, para que a comunidade não sofra ainda mais com a falta de dinheiro nas épocas em que não é permitida a pesca na região. Reflexo da situação precária da localidade é o crescente uso do crack, substituto do álcool como “companheiro” de pescadores e pescadoras para enfrentar o frio e o medo.
Os nomes são fictícios. Mariana tinha 14 anos, em 2008, quando casou com João e, já naquela época, o cigarro, a maconha e a cocaína faziam parte de sua rotina. O crack também, mas apenas no tráfico. Entregava a droga no portão de casa, conta. Anos depois o marido acabou morrendo, vítima do uso de anabolizantes. Abalada, recebeu outro choque: estava grávida de dois meses. O uso de entorpecentes só aumentou e um descolamento de placenta ocorreu, acompanhado de seguidos sangramentos. Em consulta, a médica sentenciou: a culpa era das drogas, claro. A jovem então experimentou o crack pela primeira vez. Uma pedra do tamanho da unha de um dedo mínimo. O sangue não veio. O vício, sim.
Ao contrário da gestação tranquila, realizada em casa, com acompanhamento médico e repouso, a de Mariana foi na rua, vendendo o corpo a quem tivesse dinheiro para pagar o preço de um programa. Recebia em média R$ 400,00 por noite, gastos em pedras que custavam R$ 10,00. Da metade para o final da gravidez os traficantes já sentiam pena e lhe davam a droga, para que ela não tivesse que se entregar em troca de dinheiro a homens que talvez nem mesmo soubessem seu nome. Certo dia a mãe estranhou o cheiro do cigarro que a filha fumava no quarto em que as duas confeccionavam os convites para o chá de bebê. Mariana disse que era maconha, apenas. Não era.
A situação se estendeu até os sete meses de gestação, quando Mariana pensou em se internar. Não precisou: a proximidade do nascimento da filha foi o bastante e hoje ela está há oito meses sem usar. Diz não saber direito nem o porquê de ter entrado no mundo do crack. O bebê nasceu saudável, o brilho no olho voltou e as pessoas que antes lhe viravam o rosto agora a cumprimentam - inclusive as esposas dos homens com quem se deitou, “mulheres que não mereciam aquilo”. Não tem plena confiança em si mesma ainda, porém. “É fissurante ver o pessoal fumando na esquina, sentir o aroma”, comenta.
Angústia
Hoje ela sente empatia pelas moças que passam pela mesma situação - ou que ainda engatinham na reabilitação. É o caso de Natália, filha de Carmen (nomes fictícios). Há dois meses sem fumar crack, a jovem, mãe de um filho de três anos, começou cedo também, ainda na adolescência. Chegou a passar dois, três dias fora de casa e, ao voltar, apenas dormia. Emagreceu muito. Mesmo após duas internações, o vício não a abandonou e a prostituição foi o motor.
Nas noites chuvosas a mãe, desesperada, saía as ruas em busca da filha, não raro a encontrando na praia, drogada. Por vezes Natália não estava na Colônia Z-3, nem mesmo comia por três dias. Hoje a situação mudou. “Minha filha está mais bonita. Engordou um pouco”, diz Carmen, sorrindo enfim.
A cachaça perde espaço
Não são todos os casos que já tiveram final feliz na Colônia de Pescadores de Pelotas, porém. Nas redes de atendimento à população do local a opinião é a de que a cachaça, histórica companheira do pescador, tem sido substituída pelo crack. Uma droga muito mais barata, é preciso dizer, e, portanto, mais condizente com a atual situação da área, que vive não dias, mas anos complicados em relação à pesca por conta das mudanças no meio ambiente - as fortes chuvas do ano passado atrasaram a safra - e os impedimentos para a captura do bagre e da tainha sem o correspondente aumento do seguro-defeso (valor pago aos pescadores pelo governo durante a interdição da pesca). Quem trabalha pela saúde da região já há duas décadas crava: a situação é ainda pior do que com a bebida por se tratar de um mal ilícito, invisível e que, quando aparece, já comprometeu o usuário.
Os moradores que procuram atendimento se dividem em dois grupos: o primeiro é formado por familiares que relatam aos prantos que os jovens não param mais em casa, se tornam agressivos e roubam; o segundo é o dos próprios usuários que buscam ajuda para deixar o vício. “Antes levavam a cachaça para enfrentar o frio e o medo do mar. Agora, só embarcam se o patrão comprar o crack. Só que se não embarcarem, ficam sem o dinheiro do trabalho. Se vão, mesmo que não queiram, a fissura é maior quando estão apenas eles, o barco e a droga”, afirma um dos funcionários.
Não faz parte dos planos, porém, combater o crack através da repressão, da criminalização dos usuários. “Não temos esse papel. Queremos trabalhar com saúde pública. Saber o contexto social, familiar e particular que fez cada pessoa resolver usar”, dizem, citando casos de moradores que afirmam ter recorrido às drogas por não possuírem dinheiro para pagar o aluguel, o que resultou em morar na rua e precisar se esquentar de alguma forma.
O fato de a Colônia Z-3 ser carente de ações do Poder Público, sem atrativos de lazer, culturais e esportivos, é apontado também pelos funcionários das redes de atendimento na região como justificativa. Com a obrigatoriedade das crianças frequentarem a escola apenas até os 14 anos, depois desta idade a comunidade não tem mais muito o que oferecer aos jovens. “Tem uma praça com dois balanços. Então acabam entrando para um caminho mais fácil. Se tivesse uma sala de cinema, de jogos, algo com música, eles teriam com o que se ocupar”, diz um deles. Existe a possibilidade de a sede do Sindicato dos Pescadores da Colônia Z-3 servir no futuro como um centro comunitário.
Em agosto um comitê será formado entre as redes de atendimento, o Ministério Público e a comunidade com o objetivo de se criar um projeto modelo que aborde com a população temas como o uso de drogas, de álcool e a pedofilia.
Susto quando a droga chegou
Para a psicóloga da escola do Programa de Redução de Danos da prefeitura, Gabriela Haack, foi um susto quando o crack, droga nova, chegou com tanta força em uma cidade de médio porte como Pelotas. “É algo que nos preocupa, porque faz com que as pessoas deixem de trabalhar, percam a vida que construíram”, diz, destacando que a Z-3 é um dos locais em que o uso do entorpecente é mais forte no município.
A psicóloga lembra que na maioria dos casos a família detecta o vício antes do usuário. Por isso, apresenta alguns lugares que podem ser procurados nesses casos:
Caps AD
Dom Pedro II, 813
Narcóticos Anônimos
Santos Dummont, 337
Plantão do Programa de Redução de Danos
Lobo da Costa, 1.764
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