Opinião
Pelotas de muitos encontros
Os 204 anos de Pelotas é o tema da coluna [magis]+ desta segunda
Jô Folha -
A cidade real - de se pegar, em sua inteireza - é inacessível. Fado ordinário, comum, chore-se ou não: o acesso ao que existe é mediado. Sim, habita-se, alegre-se com isto ou não, cotidianamente, a casa do signo. Pelotas ou Satolep? Lepatos, quem sabe? Ou, ainda, Plateos? Todas e, de repente, nenhuma: caminho a se fazer, pondo-perpétuo. Cada qual, a seu modo, vê, sente e imagina a cidade; constrói nela, e com ela, uma relação não com algo, como se tudo fosse coisa neste mundo de mercadores, mas com alguém. Lisboa é Pessoa. Pelotas, Ramil. Ou Freitas, a Angélica. Rubira também, entre tantos outros inquietos Luíses - de Nietzsche a Freud - como o Paulo (veja o artigo da página 4). De muitos afectos (com “c” mesmo) se faz uma cidade. E, para a confusão geral, “o sertão está em toda parte”. No pampa, inclusive. Rosa e Simões, mais vivos do que quando, não me deixam mentir.
Nem tudo é compreensível.
Para mim, nascido em outras terras, Pelotas é, de certa forma, a prometida. Antes dela, foi preciso, não sem medo, atravessar desertos. E desertos que se deram, primeiramente, por dentro. Pouco a pouco, em encontros inesperados, em pequenos goles de alegria, a sede de bem mais do que água era desfeita. Pequenos prazeres culturais - íntimos, como o de parar quieto, meditativo, em estado de reza, em frente à vitrine da Livraria Mundial. Pelotas sempre soube me dar remédios não apenas para o corpo.
Mas soube, por outro lado, me doer.
Como sabe doer - e muito mais - em tantos outros a partir de outras tantas dores diversas. Há beleza nos casarões do entorno da praça Coronel Pedro Osório. Sim, há. Mas há também sangue e sofrimento negro em cada cômodo, dando liga às paredes, regando ainda os jardins internos, lubrificando as dobradiças. Sangue e sofrimento negro que eu, nascido branco, só posso intuir. E, se me arrisco a escrever sobre esse sangue e sofrimento negro, o faço como quem, indigno, pisa em local sagrado: descalço, cuidadosamente, a pedir perdão.
Na quinta-feira, Pelotas chegará aos 204 anos. Em mim, desde que saí de Passo Fundo com minha família, fará apenas 25. E creio que já escrevi, ainda em 2009, o melhor que poderia a esta cidade de muitos afectos, deliciosa e dolorosamente contraditória, de quem sou devoto. Talvez acrescentasse alguns novos parágrafos, mas certamente não tiraria uma vírgula.
“Uma casa e tantas casas, minha cidade, onde Ramilonga se fez canção, poema e estética profunda de frio, solidão e amor. Sim, minha cidade em mim não sei como, não saberia ser quando, onde quer que fosse, onde?, se não em mim, o que me faz mais eu: assim, minha casa e tantas casas, assim, aberto à esperança de tantos milagres e povos...”
Carregando matéria
Conteúdo exclusivo!
Somente assinantes podem visualizar este conteúdo
clique aqui para verificar os planos disponíveis
Já sou assinante
Deixe seu comentário