Artigo
É a minha medida. Mas, é justa?
Por Paulo Rosa
Médico do SUS, Caps Porto, Sociedade Científica Sigmund Freud
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Buscamos, às vezes ansiamos, para que as coisas aconteçam à nossa medida. A expressão tem nuances. De um lado soa correta, no sentido de que parece mesmo natural que possamos perceber algo de nossa medida nos acontecimentos em que nos envolvemos. Espécie de rastro que deixaríamos ao caminhar. Ou, ao falarmos, se alguém nos escuta e, indo além, até ouve o que dizemos, deixando-se tocar pelo que ouviu.
De outro ângulo, e levado ao extremo, desembocamos numa concepção ditatorial. Todo ditador, ou quaisquer êmulos, restringe-se a que as coisas sejam exclusivamente à sua medida. Espécie de delírio de grandeza - como defesa, como ocultação, para disfarçar a pequenez, a moral corrupta, essência de qualquer autocrata. Há exemplo magnífico na mitologia grega. O mito de Procusto (F. Guirand, ed., New Larousse Encyclopedia of Mythology, Hamlyn, London, 1975, pág. 176), relata que o mesmo, sendo dono de estalagem à beira da estrada, recebia qualquer viajante que procurasse abrigo. Havia, porém, uma condição. Todos deveriam deitar-se em um leito especial - de onde a conhecida expressão "leito de Procusto" - no qual se consumava o insano ato ditatorial. Se o viajante era muito alto, se lhe serravam as pernas para que se ajustasse à medida. Se muito baixo, a máquina o espichava até que alcançasse a dimensão estipulada. A loucura só terminou quando Teseu aplicou ao ditador seu próprio tratamento.
É reconhecido, os mitos nos ajudam a situar-nos nos acontecimentos da vida cotidiana. Com Procusto em mente, por exemplo, poderíamos examinar, a cada momento, o quanto estaríamos próximos ou distantes de uma justa medida, aquela em nos apercebemos em sintonia com as circunstâncias - nem apagados, nem como presença maior, ou, pior, caso única.
A justa medida não se enquadra em utopias. Ao não ser utópica, porque alcançável, consiste, contudo, em momento fugaz. É como se nos situássemos no rio de Heráclito, no qual não há banho no mesmo rio. Ou, se nos colocássemos sobre a "ponte de Schlee", onde o escritor nos assinala que, em estando na ponte sobre o Rio Jaguarão, um pé no Brasil e outro, no Uruguai, vendo nossa sombra no rio que corre, somos, ao mesmo tempo, a ponte que permanece fixa e somos o rio que corre leito abaixo (Aldyr G. Schlee, O Outro Lado, Ardotempo, Porto Alegre, 2018, pág.15). A sutil percepção schleeniana nos situa em momento de justa medida, em que estamos sólidos, como a ponte, e estamos passageiros, como a água do rio.
A justa medida tem, por outro lado, abrangência universal. Apresenta-se em todo lugar e a todo instante, como possibilidade, ou, mais ainda, como necessidade. Ao executarmos uma partitura de Beethoven, a sensibilidade e a habilidade instrumental do músico, se na justa medida, oferecerá o melhor de Beethoven e, em simultâneo, de quem o interpreta.
Na singeleza de agradecer a gesto gentil, a justa medida é eficaz exemplo.
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