Celina Brod

Existo, logo envelheço

Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Acabo de sair de uma aula em que o professor leu algumas passagens das meditações de Descartes. O assunto é contemporâneo, mas a filosofia é coisa que não envelhece, por isso Descartes pode ser lido ao lado de um artigo científico. Estávamos discutindo se a mente é realmente indivisível, como concluiu o pai do cartesianismo, ou se temos mais de um centro de consciência. Somos uma única mente em um corpo ou duas mentes? Do ponto de vista filosófico, o problema da identidade pessoal é um grande problema: o que faz o eu ser eu? Nossas memórias, nossa consciência, nossa ilusão de um eu ou nossas células? Se temos dois centros de consciência, um pode querer uma coisa que o outro não quer, um pode duvidar e o outro afirmar. Se isso for verdade, qual deles seria moralmente responsável pelo mal que pratica?

A filosofia não envelhece porque as perguntas que ela se atreve a fazer não se esgotam, são perguntas que desafiam os limites do saber. René Descartes queria chegar em alguma verdade que resistisse a qualquer dúvida, algum ponto absoluto que fosse sólido o suficiente para suportar as próximas afirmações sobre o mundo. Podemos confiar nas nossas sensações? Podemos confiar nas tradições? Nossas percepções são fieis à realidade? Ao duvidar de tudo ele percebeu que até mesmo para duvidar era preciso uma mente estar presente. Era preciso uma mente existir para perguntar, era uma mente pensante, em meio a uma dúvida total, que se mantinha em pé. "Penso, logo existo". Descartes será sempre lembrado por esse dito.

Ceticismo radical é um lugar que ninguém deseja parar por muito tempo, a dúvida paralisa e o que fica é pura hesitação. Mas, o ceticismo é uma janela que todos deveriam olhar de vez em quando, a paisagem da vastidão serve para aparar as garras da arrogância. Não sou Descartes, mas também faço minhas pequenas meditações, nas quais descubro que quase nada se sustenta como verdade imóvel e absoluta. Observo meus pensamentos e percebo que eles mudam sem que eu queira, que minhas emoções não obedecem as minhas previsões, que as coisas que eu queria anos atrás não são mais as mesmas, que as pessoas que um dia foram interessantes hoje desconheço, que a vida que tenho agora talvez seja completamente diferente da vida que eu terei lá na frente, que houve um dia no qual eu não alcançava a torneira da pia e hoje faço quase tudo sozinha e que meus filhos cresceram, mas um dia saíram da minha barriga.

Vou acompanhando esse exame interno, uma meditação que mais parece um desmoronamento, uma queda livre, sem paraquedas ou anestesia. E, assim como Descartes, chego na minha ideia clara e distinta: "existo, logo envelheço". O certo seria dizer: "existo, logo envelhecendo". A conclusão lógica que vem depois é a verdade que todos sabemos, a diferença é que a morte não é verbo que cabe ser usado no gerúndio. Morre-se e ponto final. O que eu faço depois que chego nesse fundamento? Concluo que os olhos que antes batiam na altura da pia são os mesmos que sentem o mundo à volta, respiro fundo e me dou conta que a única realidade onde é possível envelhecer é o momento presente. Só um corpo vivo pode ficar velho. Então tento desfrutar da percepção que ainda estou vivinha da silva.

Essa semana circulou um vídeo, que acabou virando notícia, de duas meninas debochando da colega de faculdade de 40 anos. Segundo elas, que sofrem da síndrome da imortalidade, uma mulher de 40 anos é velha demais para se matricular na universidade, "deveria estar aposentada", disseram. O comportamento foi rotulado de velhofobia. Essas meninas, idiotizadas pela cultura da atenção gratuita, são as mulheres de 40 amanhã, detestando a própria vida no espelho, como se a face tivesse obrigação moral de resistir a qualquer marca do tempo. O pior deboche é aquele que vem de dentro, cuja consequência é uma repulsa extrema pelo próprio e inevitável envelhecimento. Fóbica é toda mente presa a um corpo que não vive o presente.

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