Paulo Rosa
Rafua, rafuagem
Paulo Rosa
Sociedade Científica Sigmund Freud, Society for Psychotherapy Research
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Que decepção! Os termos da entrada, tão vigentes e úteis há 50 anos, não constam no enciclopédico Dicionário da Cultura Pampeana Sul-Rio-Grandense, 2019, dois volumes, 1.000 páginas, do Aldyr Garcia Schlee. O Alemão deu registro, entretanto, a "bagacera, bagacerada", com as formas chiques "bagaceira, bagaceirada": pessoa a que se atribui mau caráter, desonestidade, "ou a prática de maus costumes", cujos significados são em tudo coincidentes com rafua, rafuagem. Quantas gozações faríamos com Schlee pela falta imperdoável!
É que os étimos em questão me foram trazidos por um velho amigo, em pleno encerramento do recente e inigualável Festival de Música de Pelotas 2023. Naquele cenário, ao cair do sol, no Largo do Mercado, meu amigo sentava-se, com a esposa, em local não protegido por uma discreta barreira, onde eu, a convite, me encontrava. As localizações distintas serviram de motivo para nos inticarmos. Adiantei ao referido que à medida que fossem chegando os salgadinhos e as bebidas - não mais que imaginários -, eu passaria uma parcela dos quitutes ao próprio e seus familiares. Foi quando ele reconheceu e considerou que a "rafuagem" na qual se encontrava inserido não teria mesmo acesso aos acepipes. A realidade mostrou que estava ele com a razão.
Desfrutaríamos ainda de gozações "contra" o Schlee, revelando-lhe que até o modestíssimo Dicionário de Porto-Alegrês, do Fischer, 1999, 170 páginas, dá cabida a "rafuagem", "gentalha", gente desclassificada, "chinelagem". Tal descoberta tornaria ainda mais gritante a injustificada ausência do referido vocábulo no texto pampeano maior.
Agora, breve fragmento na "língua do pampa", apud a fraseologia do Schlee no livro monumental. Caso tua compreensão se reduza a 50% ou menos do trecho a seguir, serás considerado na categoria "não sabes nada do Rio Grande".
O imprestável vinha cerro abaixo, socando canjica no lombo do petiço baio, que tinha um trote duro como la gran flauta. Mesmo assim o arreganhado vinha com as canjicas de fora, inticando a torto e a direito com os viventes que passavam. Cargoso que nem cabrito de cangalha, o animal queria chegar ligeiro no bolicho. Quando arribou para uma canha, no balcão da venda, metido a saber de capação de touro, foi se engraçar com o bolicheiro, contando lorota. Mas o bagual velho cantou as quarenta nas fuças do freguês e fez o algariado arrepiar a carreira. Ficou com cara de cachorro que comeu graxa. "Praga de corvo não mata cavalo gordo" _ sentou-lhe nas fuças o bolicheiro bagualão. Este índio era puro cerne e não levava desaforo pra casa. Com cara de tacho, sentado num cepo baixinho, o encrenqueiro tentou chaleirear os que estavam na volta, mas não lhe deram vaza. Ficou murcho que nem carancho em tronqueira.
O texto vai para o escritor João Felix Soares Neto, por solidários que somos na saudade por nosso amigo Aldyr Garcia Schlee, democrata inabalável.
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