Na luta
Das cocheiras ao telhado: a luta para preservar um patrimônio de Pelotas
Direção do Jockey Club inicia série de reformas para cumprir acordo firmado com o Ministério Público
Divulgação -
Numa tarde de quarta-feira o ex-militar do Exército, Fábio Amorim, dirige seu carro pela Salgado Filho, na zona norte de Pelotas, e em meio ao trânsito pesado da avenida recentemente duplicada aponta para a imponente estrutura formada por dois pavilhões de alvenaria com arquibancadas, erguidos diante da pista de areia oval. "Pouca gente sabe, mas isto tudo está tombado desde 2001, é patrimônio cultural da cidade", diz, referindo-se ao complexo do hipódromo da Tablada. A preservação deste patrimônio é a mais recente e difícil missão dada a Amorim, até pouco tempo acostumado a dar ordens unidas e orientar a tropa e que hoje passa parte dos dias fiscalizando um pequeno pelotão de pedreiros, encanadores e eletricistas, controlando prazos e fazendo exercícios para administrar um orçamento apertado diante do muito que há para fazer.
Parte das obras integra o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em janeiro pela direção do Jockey Club de Pelotas com o promotor Rogério Brandalise. O documento originado após vistoria feita pela Secretaria Municipal de Cultura em outubro do ano passado prevê a realização de reparos na laje e no telhado e da pintura externa dos pavilhões e da Casa de Apostas. O descumprimento do acordo representará multa diária de R$ 200,00.
Desde a assinatura do TAC, o ritmo de trabalho tem se intensificado. O telhado do pavilhão social, onde estão localizados o salão de festas e a lanchonete, já teve telhas trocadas e aplicação de manta asfáltica para acabar com goteiras e infiltrações que ameaçavam a estrutura. "A previsão é de que até abril, quando será realizado o Grande Prêmio Princesa do Sul, a primeira fase esteja terminada", diz Amorim, atual vice-presidente de Patrimônio do Jockey Club de Pelotas.
Enquanto caminha pelas arquibancadas do pavilhão social, inaugurado com pompa e festa em 1963, ele explica que esta primeira etapa inclui ainda a reposição de vidros quebrados, o conserto dos banheiros e a renovação da rede elétrica, essencial tanto para a segurança do prédio como para o funcionamento da casa de apostas.
A segunda parte do trabalho deverá ser de pintura do pavilhão popular, restauro do pórtico e do hall de entrada e construção de um muro para cercar toda a área em frente à avenida Coronel Zeferino Costa. A dificuldade em fechar as contas impede estimar prazos para esta segunda fase, mas não a decisão de fazê-la. "Creio que até julho, metade de tudo o que há para ser feito esteja pronta", afirma.
Contas e mais contas
Para explicar a complicada matemática da obtenção de verbas para tocar os projetos previstos no TAC, Amorim pede reforço ao vice-presidente de Finanças, Antonio Meireles. Protegidos do calor pelo ar-condicionado da sala da direção, Amorim e Meireles apresentam a conta que lutam todos os meses para fechar: a arrecadação e as despesas do clube.
Meireles explica que atualmente o Jockey tem duas fontes de renda: as apostas e as taxas pagas pela hospedagem de animais na Vila Hípica. A primeira, além de incerta, é de onde se tira o dinheiro para os custos fixos de pessoal e da infraestrutura necessária para manter as instalações e realizar as corridas - hoje, para uma tarde com quatro ou cinco páreos este valor é de R$ 4 mil - e o pagamento dos prêmios tanto para os apostadores como para proprietários, jóqueis e treinadores.
Isso explica, por exemplo, por que no último final de semana de corridas o movimento total de apostas foi de R$ 31,4 mil, mas as contas finais apresentaram saldo negativo de R$ 2,1 mil ao clube. "Hoje não há jóquei clube no Brasil que não opere no vermelho, isso é uma realidade em Pelotas, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro", sentencia Meireles.
A partir da incapacidade do jogo em manter as contas em ordem, o socorro para o caixa único viria da taxa de R$ 30,00, cobrada mensalmente sobre cada animal hospedado na Vila Hípica. Porém, o verbo tem sido propositadamente conjugado no futuro do pretérito, pois o aumento desta receita depende da chegada de novos animais e para isso é preciso investir na modernização dos antigos pavilhões. Assim, os R$ 4,2 mil levantados a cada mês com os 140 animais hoje instalados ali acabam ficando na Vila. Como alternativa, surgem então parcerias com a iniciativa privada para locação de espaços ociosos, aluguel do salão e do clube para festas e a busca de patrocinadores para os grandes eventos.
De volta ao carro para contornar o hipódromo e ir até a Vila Hípica, Amorim defende que os investimentos feitos na estrutura erguida nos anos 60, além de um pedido antigo dos profissionais e proprietários, é uma necessidade financeira. "Nossa capacidade é de receber até 250 animais, quando chegarmos a este número poderemos dispensar parte da receita para outras frentes, mas até lá há muito o que fazer", diz.
Mergulhando na alma do prado
O passeio público Ciro Cedar Araújo é uma rua de chão batido, ladeada por pavilhões de cocheiras que se estende por aproximadamente 800 metros desde a avenida Salgado Filho até pouco depois do fim da reta oposta da raia de corridas. Diariamente entre 50 e 60 pessoas trabalham ali, ocupadas com trato e treino dos animais. O vaivém de homens e cavalos é constante neste espaço, tido como alma do Jockey Club. Cada pavilhão tem, em média, 20 cocheiras e é cedido a um treinador ou dividido entre dois ou mais, caso tenham poucos animais para abrigar.
A cada dezena de metros percorridos, Amorim vai recebendo pedidos. Telhas para trocar, piso e duchas para consertar, cercas para remendar, um sem-fim de pequenas demandas que, somadas, formam um grande pacote e indicam a necessidade de uma reforma ampla e geral como não se fez em décadas.
Para tentar atender parte das necessidades da comunidade de profissionais foi iniciado no ano passado um projeto de modernização e ampliação de instalações que vem sendo tocado pavilhão por pavilhão. "A gente faz tudo tentando baratear os custos, e as obras são contratadas por empreitada e por partes, só começamos uma nova intervenção depois de finalizar a anterior", explica, antes de frisar que somente a troca de todos os 1.200 metros quadrados de telhados está orçada em R$ 40 mil. "É impossível fazer tudo de uma única vez."
Responsável por 14 animais, Eziar Santos foi um dos primeiros contemplados com as intervenções. Suas cocheiras ganharam pisos, telhados e portões novos, pintura e um alpendre para proteger da chuva. "Fazia muitos anos que nada era feito aqui", admite o treinador, campeão das duas últimas temporadas.
A reorganização dos espaços e as reformas têm sido motivo de satisfação até para aqueles que esperam pacientemente por sua vez, como João Rodrigues, 77 anos, o mais velho treinador em atividade no Jockey Club de Pelotas e que hoje cuida de três animais em um dos últimos pavilhões da Vila. "Quando a estrutura melhora, o trabalho da gente melhora e o espetáculo para o público também", comenta o treinador de Ask Me Not, o maior campeão da Tablada nesta década.
Compreender isso, conforme Amorim, é o primeiro passo para se conseguir enfrentar o desafio de tocar projetos caros, trabalhosos, com o orçamento curto, afinal, a engrenagem tem que funcionar e as melhorias acabarão representando cavalos com resultados melhores, mais emoção nas provas, mais público nas arquibancadas, mais apostas nos guichês e, finalmente, mais dinheiro em caixa para seguir em frente. "Por isso a gente diz que o turfe é mais do que um esporte."
Um pouco de história
O Jockey Club de Pelotas foi fundado em 22 de junho de 1930 por um grupo de entusiastas das corridas de cavalos puro sangue inglês (PSI). O principal responsável pela organização do clube em seus primeiros anos foi o coronel Zeferino Costa Filho, que hoje dá nome à avenida que passa diante dos portões da entidade. No início eram realizadas apenas corridas rasas (reta). A pista oval de 1.600 metros foi concluída em 1934. Dois anos depois foi construído o pavilhão central - substituído na década de 1960 pelo atual pavilhão social.
Em 1936 nasceu o principal clássico do Jockey Club de Pelotas: o Grande Prêmio Princesa do Sul. Em sua primeira edição a prova bateu recordes de apostas de todo o Estado. Na década de 1970 o clube chegou a ter 1,2 mil sócios.
Atualmente é o único jóquei clube em atividade regular no interior do Rio Grande do Sul, um dos principais do Brasil em volume de apostas e o principal em números de público presente regularmente nas corridas.
Patrimônio da cidade
Em 2001 a Lei 4.740, de autoria do então vereador Eduardo Abreu, declarou o Hipódromo da Tablada como patrimônio histórico e cultural de Pelotas. Desde então, toda a área está protegida e sua manutenção é fiscalizada periodicamente pela prefeitura e pelo Ministério Público.
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