Vida real
Dos campos de golfe para as ruas da cidade
Ex-auxiliar de um dos melhores golfistas do país, João Luz trocou a elegância dos torneios pela vida dura como guardador de carros
Gabriel Huth -
João Luz, o Bolinha, percorreu os mais importantes torneios de golfe e hoje vive como guardador de carros (Foto: Gabriel Huth - Especial DP)
Quem vê o homem simples que passa 14 horas por dia em frente a uma churrascaria no Centro de Pelotas para ganhar alguns trocados não imagina que ali está um grande entendedor sobre um dos esportes mais elitizados que existe. João Luís Luz, hoje guardador de carros, passou boa parte da vida entre tacos, bolas, campos perfeitos e elegantes torneios em clubes gaúchos e do Uruguai.
Aos 54 anos, João é figura de sorriso fácil, de conversa leve e descontraída. Carisma que ajuda a ganhar a confiança dos moradores da rua Santa Tecla, próximo à avenida Bento Gonçalves, onde trabalha. Por ali, entre uma ajuda e outra a quem estaciona, faz pequenas tarefas rápidas: carrega sacolas, entrega compras, busca frutas e verduras na feira livre das quintas-feiras. Com isso, consegue faturar uns R$ 30 por dia. Sem folgas em finais de semana e feriados. Com frio ou sol de rachar.
Mas nem sempre foi assim. Durante 25 anos, não eram donas de casa as auxiliadas com sacos pesados. Tampouco motoristas que recebiam orientações. João era caddie (veja quadro com glossário). No entanto, mais do que fazer o básico da função carregando kits de equipamentos que podem variar de R$ 2 mil a até R$ 15 mil, Bolinha (apelido adquirido entre os golfistas) foi além. Aprendeu tudo sobre cada taco indicado para as jogadas, tipos de gramado, influência do vento, do relevo. Se especializou.
Tamanho conhecimento veio da observação. E da superação. Nascido em família pobre, aos três anos foi entregue pela mãe, solteira e sem condições de criá-lo, para uma tia que morava no Jardim América, no Capão do Leão, perto do Clube Campestre. Um dia, a caminho do campo para um torneio, viu a mãe de criação sofrer um infarto e morrer. João não recorda a idade que tinha, só lembra que estava de aniversário. “Era um guri e tive que morar sozinho. Foi o que me fez frequentar ainda mais o clube para ganhar um dinheiro.” De tanto assistir partidas de golfe, virou caddie e passou a ganhar em média o equivalente a dois salários por mês. Foi nesse tempo que fez amizade com um jogador que viria a ser um dos melhores do país na modalidade.
Octavio Villar, o Fanta, passou a treinar e competir sempre ao lado de João. O talento nas tacadas somado às orientações precisas renderam à dupla cerca de 30 torneios de abrangência estadual, nacional e internacional. Tornou-se primeiro colocado no ranking gaúcho de amadores, posição que ainda ocupa. “Foram sete ou oito anos competindo juntos. Além de ser muito querido por todos os jogadores, ele tem muito conhecimento, era um ótimo caddie”, elogia. A sintonia era tamanha que após o fim da parceria com Bolinha, Villar nunca mais manteve um caddie fixo.
A mudança
João não fala do que o levou a deixar o golfe e a vida tranquila que tinha, bem diferente do aperto atual na casa simples da Vila Castilhos. Prefere não lembrar do que considera um erro. Convencido por um advogado de que poderia ganhar muito dinheiro acionando judicialmente o clube pelo trabalho que prestava, rompeu relações com jogadores e deu uma guinada na vida. Sem o golfe e o dinheiro prometido, restou se virar como flanelinha para sustentar os quatro filhos, Miriam, Rafael, Helen e Milene. “Não é fácil, mas felizmente tenho saúde e estou me virando. Quero ver eles se formando na faculdade, fazendo a vida deles.” O esforço está valendo a pena. Helen cursa Letras na Universidade Federal de Pelotas e Milene está estudando para uma vaga em Química Forense.
Esta semana, João fez o caminho inverso. Largou as ruas e retornou ao campo de golfe onde se criou. Após 15 anos, reviu colegas caddies que permanecem no clube e lembrou algumas das grandes jogadas em que pode colaborar orientando as tacadas. Até arriscou algumas. “Fazer o swing é que nem andar de bicicleta. Meu negócio sempre foi o approach”, brincou.
Entre um sorriso e outro andando contando histórias de grandes drives e boas tacadas nos greens feitas pelos amigos, João só fica sério para falar da saudade. “Me arrependo de ter deixado o golfe, era bem conhecido. Poderia estar até hoje fazendo isso, nos torneios. Tem o dinheiro, sair do sufoco, claro. Mas o melhor é os grandes amigos que fiz, como o Fanta. Amo esse esporte”, diz, antes de retornar à Santa Tecla para a batalha diária por algumas moedas.
GLOSSÁRIO
Approach - tacada de aproximação da bandeira/buraco
Caddie - auxiliar que carrega os tacos do golfista e também pode orientar jogadas
Drive - tacada longa, geralmente a primeira do jogo
Green - área final de cada buraco, onde a grama é mais baixa e a superfície mais plana
Swing - movimento do corpo do golfista para dar a tacada
Carregando matéria
Conteúdo exclusivo!
Somente assinantes podem visualizar este conteúdo
clique aqui para verificar os planos disponíveis
Já sou assinante
Deixe seu comentário