Martírio
Exclusão, inclusive, após a morte
Impasse durou mais de 12 horas até que idoso de 72 anos, obeso mórbido, pudesse ser sepultado
Carlos Queiroz -
Receber a notícia da morte de familiares e amigos já é naturalmente doloroso. Para quem não possui reserva financeira e tem um ente querido com obesidade mórbida para sepultar, a situação pode se transformar em martírio, em Pelotas. Foi o que ocorreu no sábado, dia 13 de julho. Até o aposentado Raul Valente de Moraes, 72, poder ser sepultado, foram mais de 13 horas de negociações. Desencontro de informações. Busca por espaço no Cemitério da Boa Vista. Tentativas iniciais frustradas para cremação. Correria atrás de caixões que comportassem o idoso de 330 quilos. Corpo de Bombeiros acionado. É mais um exemplo que comprova a exclusão a que os obesos estão submetidos. Em vida e também na morte.
E o pior: até chegar à solução, na madrugada de domingo, Raul de Moraes permaneceu em um dos dez leitos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) Geral da Beneficência Portuguesa, que deveria estar disponível a um paciente em tratamento. O caso ganhou as redes sociais e bateu à porta da Secretaria de Assistência Social. Ao final, o caixão que viabilizou o enterro veio da filial de uma funerária, na cidade de Capão do Leão.
“Comecei a fazer o caminho das funerárias, explicar que eu tinha um dinheiro para receber, mas ou era muito caro ou não tinha o tamanho que servisse”, conta Raul Valente de Moraes Filho, 47, que acaba de ficar desempregado. A peregrinação em busca do serviço para enterrar o pai, com dignidade, teria começado em função de duas situações: a intenção de cremá-lo e a informação inicial repassada pela Central de Óbitos de que - pelo meio assistencial - não havia vaga no Cemitério da Boa Vista nem a possibilidade de disponibilizar caixão com as características que precisava. “Me disseram que o pacote assistencial só tinha caixão do tamanho padrão”, afirma. “E, num segundo momento, quando me disseram que tinha lugar no cemitério, igual me avisaram que o caixão era comigo”, explica.
O impasse só se resolveu no meio da madrugada, diante da preocupação também do hospital em ver o caso resolvido. Ao ser chamada a funerária do topo da lista do rodízio para os quadros assistenciais, veio a solução. A empresa, que tem filial no Capão do Leão, dispunha no estoque de um caixão que permitiria o sepultamento de Raul de Moraes, de 72 anos.
Ao conversar com o Diário Popular, Raul Filho mescla dois tons: indignação e gratidão. Nos últimos meses, não foram poucas as vezes que precisou contar com apoio de amigos e de anônimos, profissionais da Saúde e do Direito, para que o pai pudesse ao menos levantar da cama. Com infecção nas duas pernas, problemas de coração e 330 quilos, qualquer movimentação era difícil. Até mesmo para higiene. Não raro, o Corpo de Bombeiros foi chamado. “Queria agradecer a todos, inclusive, as pessoas que tentaram me ajudar a encontrar uma solução pra poder enterrar o pai”.
Lei não restringe o tamanho do caixão
A lei municipal 4.652, de abril de 2001, não traz qualquer limitação da dimensão do caixão que poderá ser oferecido nas situações assistenciais. Está no artigo 27, em um dos cinco tipos de funeral: o presente serviço destina-se à comunidade carente e deverá ser prestado sem custo nenhum à família enlutada, sendo composto por urna mortuária sem visor, quatro alças fixas e lenço para rosto. Não há descrições sobre tamanho.
Ainda assim, o chefe da Regulação de Óbitos, Pedro Pereira Maich, sustentou ao DP: “A lei não prevê exceção, mas a regra geral”. Foi o argumento apresentado para justificar o porquê a orientação da Central de Óbitos foi de que o caixão para obesos não estava incluído. Maich afirmou ainda que desde 2013, quando passou a integrar a equipe, nenhum caso parecido teria sido registrado. “A lei abrange a normalidade. O que ocorreu é a exceção da exceção”.
Ao destacar que uma média de 28 a 30 sepultamentos assistenciais são realizados por mês, o chefe da Regulação garantiu que a Central é um facilitador: “Não dificultamos nada para ninguém”.
A posição do hospital
A Beneficência Portuguesa explica que Raul Valente de Moraes permaneceu por mais de 13 horas na UTI Geral, sem ser conduzido ao necrotério do hospital, devido à logística envolvida para o deslocamento. “Ficamos aguardando a liberação dos familiares”, afirmou a instituição através da assessoria de imprensa. Era a forma de removê-lo uma única vez, quando as decisões do sepultamento já estivessem tomadas.
Quem pode acessar o funeral assistencial
Para ser beneficiado pela gratuidade da lei que cria o Sistema Funerário Municipal, o cidadão deve comprovar renda de até um salário mínimo e/ou vinculação com algum programa assistencial do governo federal, como Bolsa Família.
A Central de Óbitos aciona, então, a primeira de uma lista de 13 funerárias permissionárias que fazem rodízio para oferecer o serviço sem custos ao cidadão. Ao invés de as funerárias receberem em dinheiro da prefeitura, as empresas deixam de pagar o valor correspondente de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).
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