Direitos humanos

Jovem tem reconhecimento de gênero não binário na certidão

Fato ainda raro no Brasil trouxe felicidade e alívio a um adolescente de Pelotas, morador de Salvador

Foto: arquivo pessoal - Sol, de 14 anos, celebra a chegada do novo documento.

Por Michele Ferreira
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Uma decisão judicial proferida em Salvador, na Bahia, torna-se uma das primeiras no Brasil a reconhecer um adolescente como trans, de gênero não binário. O reconhecimento já está expresso na certidão de nascimento. Ao ser entregue, na região Nordeste do país, o documento trouxe felicidade - e alívio - a uma família pelotense, em especial ao estudante Sol Almeida de Vasconcelos, 14, que viu o nome com que já vinha sendo chamado também ser oficializado.

“Foi um ótimo passo, um grande passo. Foi algo que me deixou muito contente. Feliz”, resume o jovem. A mãe Simone Vasconcelos, 47, faz coro às palavras do caçula. “O dia que saiu a liminar, em 9 de novembro, foi emocionante. Parece que o Sol tinha nascido de novo”, compara. E prepara-se para fortalecer a luta contra o preconceito, latente não apenas no ambiente escolar. “Só quero que ele seja um ser humano em paz e feliz”, enfatiza e torce para Sol dar cada vez mais vazão às criações em pintura e ao violão. “Muitas pessoas não entendem, mas quem sofre é a criança, o jovem. Não é um capricho. É uma condição”, reitera, como resposta a eventuais críticas de que a medida possa ter sido tomada prematuramente.

Os primeiros sintomas depressivos surgiram por volta dos dez anos de idade, quando a filha passou a se isolar. A não querer mais brincar. Na sequência, a mudança de comportamento começou a ser percebida, inclusive, quando estava junto à família. Aos 13 anos surgiu a iniciativa de conversar com a mãe. A grande preocupação era ser aceita. Foi quando explicou que não se identificava 100% com nenhum dos gêneros: nem com o feminino - que a havia acompanhado durante a infância - nem com o masculino. A mudança de nome, inclusive, era um dos sonhos.

Surgiu, então, a ideia de Sol, que remete à possibilidade de neutralidade no uso. Sabendo da dificuldade na incorporação do pronome neutro, os Vasconcelos optaram por adotar o ‘ele’, com que Sol se sente mais confortável. “Pra nós o que importa é o caráter. O ser humano que Sol é e vai se tornar, que esteja bem psicologicamente, emocionalmente”, destaca Simone. E, ao olhar para o futuro, Sol projeta uma carreira como designer e tatuador. Uma rotina cercada de amor, ainda que ele, a mãe Simone e o pai Robert estejam na Bahia e as irmãs Jennifer, 29, em Pelotas, e Sherlyn, 26, no estado de Santa Catarina.

Melhor interesse da criança e do adolescente falou alto

Em texto de cinco páginas, o magistrado da Vara de Registro Público de Salvador, Gilberto Bahia de Oliveira, fez referência ao direito à dignidade previsto na Constituição Federal e, claro, mencionou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.

Em um dos trechos, o juiz destaca:
… quando estamos diante de uma situação deste jaez, imprescindível a aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que tem todos os seus direitos resguardados constitucionalmente.

Dentro deste mister, e porque não há um conceito pré-definido acerca do melhor interesse da criança, é permitido que a norma seja adaptada conforme as imprevisibilidades e especificidades de cada situação.

Durante a instrução processual, em especial, após ouvida dos genitores, ficou patente o elevado grau de angústia, medo, aflição por eles vivenciados, por conta de uma sociedade que verdadeiramente não se encontra preparada para acolher pessoas que fogem aos ditos padrões comportamentais.

Essa preocupação acerca do melhor interesse da criança e do adolescente é primordial, vez que tem como objetivo maior zelar pela sua boa formação moral, social e psíquica.

Apelo por respeito e inclusão
Duas frentes transformam-se na base do Coletivo Mães do Arco-Íris fundado em junho de 2018, em Salvador, na Bahia: acolher mães de LGBTQIAP+ para que possam se fortalecer e acessar conhecimento e desenvolver ações diretamente ao público LGBTQIAP+. Encaminhá-los para rede de apoio e atendimento psicológico, além de suporte jurídico, são algumas das principais medidas.

Mas são muitas as bandeiras. “Precisamos romper com esta estrutura social que coloca à margem, discrimina tudo que não está dentro da cisheteronormatividade”, afirma a coordenadora do Coletivo, Cristiane Sarmento. E lembra que o tema sexualidade ainda é tabu, um assunto rejeitado em vários ambientes. Pior: não raro, as primeiras situações de violência e preconceito ocorrem dentro de casa, ainda na infância.

Por isso, a importância de se debater e entender a diversidade humana. Cristiane ainda faz questão de orientar, especialmente, as mães de crianças e adolescentes - assim como fez com Sol - e alerta: “Não é uma fase ou modinha, como muitas pessoas pensam. A sociedade é que impõe gênero masculino e feminino em tudo, nas cores, nas roupas e nos brinquedos, desde cedo”, lamenta.

E no processo de derrubar esses muitos padrões é preciso estar tranquilo: este filho, filha ou filhe não é uma pessoa desajustada ou ‘problemática’. “É preciso lembrarmos que o ser humano, plural e único, está em permanente construção e desconstrução de si mesmo, enquanto tiver vida. Todos os dias”, argumenta.

E nesse chamamento para que a sociedade naturalize a visão sobre corpos e existências, Mãe Cris aponta dois caminhos para transformação social: pela sensibilidade, pelo esforço em aprender, pela compreensão e pelo amor ou pela lei. “Se não houver outro jeito, usaremos os mecanismos da Justiça para a garantia de direitos”.

A palavra da Comissão de Diversidade Sexual da OAB
A sensibilidade do juiz da Vara de Registro Público de Salvador, Gilberto Bahia de Oliveira, ao conduzir o processo e fundamentar a decisão foi destacada pela presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Subseção Pelotas, Alice Brum Llanos. “Que este humanismo e compreensão sirvam de exemplo para futuras demandas judiciais que tenham como objeto a alteração de nome e de gênero, ainda que de menores de idade”.

A advogada ainda mencionou o fato de o Brasil figurar como um dos países mais transfóbicos do mundo, onde pessoas LGBTQIAP+ são vítimas de violência diariamente. “Não é crível que ainda tenhamos discussões sobre este tema, em pleno 2023, e que não haja qualquer empatia ou acolhimento das pessoas que se entendem e se enxergam fora do padrão cis e heteronormativo”, sustenta. “Não cabe a terceiros tal julgamento que não a própria pessoa”.

Entenda melhor
O que é identidade sexual?
Está ligada a quem a pessoa se sente atraído/a. A forma como se relaciona romântica e sexualmente. São os heterossexuais, homossexuais, bissexuais e pansexuais.

O que é identidade de gênero?
É como a pessoa se reconhece, a percepção que tem de si mesmo/a. A forma como se sente confortável.

Há as pessoas cisgênero, que se identificam com o gênero - masculino ou feminino - que lhe foi atribuído ao nascer.

E as pessoas transgênero que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. O próprio prefixo trans, oriundo do Latim, ajuda a compreender o significado: “além de”, “para além de”, “o outro lado” ou “o lado oposto”. Veja também:
• Homem trans: É a pessoa que foi designada mulher ao nascer, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina.
• Mulher trans: É a pessoa que foi designada homem ao nascer, mas se identifica com uma imagem pessoal feminina.
• Não binários: São aquelas que não se encaixam 100% em nenhum dos dois gêneros socialmente aceitos. Ainda assim, em boa parte dos casos a pessoa se sente mais confortável em ser tratada por ela ou ele. É uma delicadeza, portanto, descobrir este detalhe na hora de conversar com alguém não binário.

Saiba também
Perguntas a não fazer para uma pessoa trans:
• Qual o nome com que foi registrada/o ao nascer? Apenas adote o novo nome com que a pessoa se reconhece, ainda que a retificação não tenha sido providenciada oficialmente em cartório. O nome do registro ao nascimento é considerado morto.
• Fez cirurgia para mudança de sexo? É uma informação que remete à intimidade e só interessa a própria pessoa. Além de invasiva, é o tipo de curiosidade encarada como forma de violência.


• Desde 28 de junho de 2022 está em vigor no Brasil a lei 14.382 que permite a qualquer pessoa, a partir dos 18 anos de idade, a troca de nome e de gênero diretamente em cartório. Não há necessidade de ingressar com ação judicial nem apresentar justificativa para mudança. Para os cidadãos não binários, entretanto, ainda é necessário recorrer à Justiça para mudança de gênero na certidão de nascimento, mesmo que sejam maiores de idade. Os números de carteira de identidade e de Cadastro de Pessoa Física (CPF) permanecem os mesmos.
• Janeiro é o mês da Visibilidade Trans no país.​

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