Uma década
O bem que vem da terra
Associação Bem da Terra completa dez anos e envolve mais de 300 famílias, entre produtores e consumidores, através da economia solidária
Paulo Rossi -
É pelas mãos de Joaquim Duarte, 40 anos, que mudas e sementes de cenouras, beterrabas, brócolis e couves são colocadas na terra para crescer. Estas mesmas mãos, tempos depois, são responsáveis por colher o fruto do trabalho com a terra. Também é através destas mãos que cada produto plantado e colhido é entregue para consumidores de toda a cidade. Morador da Zona Rural de Morro Redondo, Duarte é um dos agricultores que integram o Bem da Terra, associação de economia solidária que completa dez anos nesta quarta-feira (25). Como forma de comemoração, no próximo sábado (28) produtores e consumidores se encontram na antiga sede da AABB, na rua Alberto Rosa, 580, em Pelotas, onde haverá oficinas e um almoço solidário com produtos locais.
A propriedade é pequena. São dois hectares onde Duarte planta hortaliças e cria uma vaca. O formato é agroecológico e orgânico, sem agrotóxicos. A principal ferramenta é uma enxada que mexe a terra para que as plantas se desenvolvam bem. A relação é de respeito, ele destaca. Alternando plantações, compostando restos orgânicos, resíduos da vaca. “Tudo a gente reaproveita e tudo acaba sendo o mais natural possível”, explica, mostrando algumas plantas de couve-flor que ele utiliza como matriz para criar novas mudas.
A produção não depende da compra de mudas, fertilizantes, químicos. Assim é o processo agrícola de outras três famílias que integram o grupo São Domingos. A esposa, Leonor Dutra, 57, também trabalha na produção de bolos, queijos, biscoitos e pães. A maior parte desses produtos é escoada através da rede Bem da Terra, que articula feira e aproxima os produtores dos consumidores em diversas frentes.
Assim como o grupo São Domingos, outros 40 coletivos, cooperativas e associações integram a rede de produtores do Bem da Terra. O número de integrantes de cada um deles varia, e vai de três a 30 famílias.
“Os grupos reúnem em torno de 200 famílias de produtores que funcionam de maneira solidária, cooperativa, autogestionária, não existem donos dentro dos grupos”, define Antônio Cruz, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e testemunha destes dez anos de história.
O Bem da Terra
Hoje coordenadora da Associação Bem da Terra, Eldamar Ribeiro é integrante de um grupo de artesanato chamado Charlot, que produz cadernos artesanais com papel reciclado. Ela explica que o foco da associação, desde a criação em 25 de setembro de 2009, é na economia solidária. “Os grupos coordenam seus próprios negócios. A associação é um norte para os produtores escoarem suas produções de forma cooperativa e coletiva”, diz.
A fundação da associação partiu da Incubadora de Iniciativas Populares da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em uma pesquisa que se iniciou em 2008. Além da UCPel, participam e apoiam o projeto o Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul) e a UFPel, através de núcleos focados na economia solidária.
Organizados e em expansão
Cada grupo se reúne uma vez por mês para debater a produção, as vendas e o escoamento, e planejar novos rumos. Conceituado numa gestão horizontal, quando as vozes possuem o mesmo peso nas decisões, toda gestão comercial e produtiva é baseada em decisões coletivas dos associados. Uma vez ao mês, todos os grupos se reúnem.
São produzidos artesanatos, roupas, alimentos processados e semiprocessados, laticínios, hortifrutigranjeiros, cerveja, produtos de higiene, cosméticos, entre outros. Além destas produções locais, a rede articula compras de produtos de outras regiões, como café, farinhas, erva-mate e castanha, oriundos de outros empreendimentos também baseados na economia solidária.
Para além do consumo
No saguão do Campus Anglo, da UFPel, cerca de dez bancas faziam a feira na manhã de ontem. De artesanato, comidas a produtos naturais, estudantes e professores podem adquirir produtos olhando nos olhos de quem participou ativamente de sua produção. “Hoje a gente chama de família, porque um empreendimento ajuda o outro, aqui não tem esta história de competição”, comenta Leonor Dutra.
A estudante Joana Ayres, 33, veio de Minas Gerais estudar Arquitetura e Urbanismo na UFPel. Uma produção de pães de queijo conquistou os colegas, que a incentivaram a ir além. Surgiu o Ki Merengue, que comercializa alimentos feitos por três mulheres. “É um universo que a gente aprende a ser solidário, hoje é minha fonte de renda”, conta.
Formando consumidores conscientes
Em 2014, surgiu outra iniciativa vinculada ao Bem da Terra que é um coletivo de consumidores responsáveis, como é conhecida a Feira Virtual Bem da Terra. Através de uma plataforma na internet, cerca de cem famílias realizam encomendas semanalmente, as quais são retiradas aos sábados pela manhã. Através de uma lista de produtos, o consumidor vai escolhendo e formando sua compra.
Hoje o Bem da Terra está presente em Jaguarão, Rio Grande, São Lourenço do Sul, Canguçu e Pelotas com esta iniciativa. Surgiu como forma para fortalecer a economia solidária, direcionando o consumo para estes empreendimentos.
Para participar, é feito um acolhimento do consumidor aos sábados pela manhã no Centro de Distribuição, que no próximo sábado passa a funcionar na AABB (rua Alberto Rosa, 580). Para isso, a pessoa se compromete a participar das assembleias da associação e doar o equivalente a quatro horas de trabalho a cada três meses. Isso implica em separar os produtos que chegam da Zona Rural um sábado pela manhã do trimestre, por exemplo. 75% do valor pago vai para os produtores e 25% cobre custos da operação, que inclui o funcionamento e a logística.
O que é economia solidária
Também pesquisador do assunto, Antônio Cruz explica que este processo econômico ganhou força no Brasil dos anos 1990, com o crescimento do desemprego e com o êxodo rural. Hoje são mais de 20 mil empreendimentos em todo o país. “A propriedade do empreendimento, o poder de decisão, o trabalho e os resultados econômicos são compartilhados de maneira democrática e solidária entre as pessoas que participam”, sintetiza.
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