#Pelotas208Anos

Um aniversário de saudades

Pelotas completa 208 anos em meio à pandemia e moradores apontam, com as palavras e com o coração, as coisas que mais fazem falta na rotina

QZ7 Filmes 0055(Foto: QZ7 Filmes - Especial - DP)

No dia em que completa 208 anos de história, Pelotas está vazia. A cidade amanheceu com o comércio não essencial fechado devido à nona rodada do Distanciamento Controlado, que classificou o município com a bandeira vermelha. Com mais de dois séculos de emancipação, a Princesa do Sul vive um aniversário diferente, que terá como protagonista a saudade, seja ela do Laranjal, do Calçadão e até mesmo da família. Em meio à pandemia global do novo coronavírus, a Cidade do Doce pede que as comemorações aconteçam em casa e que o espírito solidário do pelotense permita que ele cuide de si e do próximo.

Quem também celebra este 7 de julho é o casal Iara e Edmundo Acosta. Apaixonados por Pelotas, eles comemoram 53 anos de 'namoro' junto com o aniversário da cidade. De quarentena desde março, as maiores saudades deles têm nomes e sobrenomes: os oito netos. Para amenizar a falta dos abraços, que não ocorre há quatro meses, as videochamadas ganharam vez. "É o único jeito que enxergamos eles", disseram, tendo certeza que a distância é a maior prova de amor. Outra saudade do casal é a simples ida ao supermercado. "Somos viciados", brincaram. Eles também estão longe dessa paixão, já que os filhos se responsabilizaram pela atividade. "Deixam as coisas aqui na calçada e eu só coloco pra dentro de casa", contou Iara. 

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O amor pela Princesa do Sul acompanha a dupla desde suas infâncias. Iara era professora e Edmundo ingressou na carreira de bancário ainda jovem. Por isso, acabaram passando 26 anos longe da cidade e vivenciando outros municípios gaúchos, como Santa Maria, Santana do Livramento e Bagé. Porém, o desejo era encerrar as atividades na terra natal e poder curtir a aposentadoria perto do restante da família. A rotina dos aposentados era simples, com muitas caminhadas, compras no centro e passeios pelo Laranjal e zona rural da cidade. Agora, o jeito é encontrar ocupações para o tempo passar, como pinturas, tricô e até jardinagem. Para os próximos meses o desejo é que os abraços voltem a ser a maior representação de carinho. E com isso os netos possam, novamente, curtir a presença dos avós.

Rivalidade dentro de campo, saudade fora dele

Além de ser a Terra do Doce, Pelotas também é terra de futebol. Dona de um dos maiores clássicos do interior do país, a Princesa do Sul acumula torcedores saudosos nessa época de distanciamento social. A Mariana Vighi, 30, nasceu Xavante. "A paixão veio de família, então foi muito fácil seguir a tradição", disse. O Bento Freitas e os jogos do Brasil estão no topo da lista de saudades da pelotense. Há mais de duas décadas acompanhando o time rubro-negro, ela coleciona memórias importantes, como o "Bra-Pel dos nove", em 2004, e o acesso à Série B, contra o Fortaleza, no Castelão, em 2015.

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A jovem é fisioterapeuta e trabalha de forma autônoma, então a regra sempre foi uma só: organizar a agenda de acordo com os jogos. "Ir ao estádio faz parte da minha rotina. Tento não me ausentar em nenhuma partida", conta. O ritual em dia de jogo é sempre o mesmo. "Chego no estádio, vou para o mesmo lugar. Digo que não vou me estressar e me estresso, mas tudo vale a pena", brincou.

Com a pandemia da Covid-19, o ritual precisou ser quebrado. Agora, Mariana segue as novas determinações municipais e, em maio retornou com os atendimentos, sempre tomando os devidos cuidados. Além do desejo de uma Pelotas que gere empregos e ofereça saúde e moradia digna às pessoas, ela sonha com o dia que a Baixada vai voltar a ser do jeito que ela gosta: lotada de torcedores e vitórias.

Quem também vive a mesma situação da Mariana, mas do outro lado, é o áureo-cerúleo Magno Pires, 37. A história com o clube começou cedo, aos seis anos, quando ele alimentava um sonho de infância: ser jogador de futebol. O plano de estrelar nos gramados não deu certo, mas o de viver a arquibancada se realiza diariamente. "Através de uma frustração, nasceu um sentimento sem explicação", falou, emocionado.

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A maior mudança na rotina de Magno são os mais de cem dias sem ver o Lobo jogar. Ele trabalha como líder de classificação em uma arrozeira, então o teletrabalho não é viável. Faltar aos jogos nunca foi uma opção, já que o torcedor sempre encontrava um jeito de arrumar os horários. "Meu chefe fala que se não me liberar eu infarto na empresa", brincou.

Para amenizar a maior saudade, Magno se diverte com as reprises de jogos antigos e garante que esse é o melhor jeito - já que a prioridade é proteger vidas.

Há 30 anos, quando esse sentimento começou, o torcedor áureo-cerúleo ouvia muito que não deveria torcer para o time da Avenida. "Muitos me diziam que 'preto' e 'morador da vila' não podia torcer pro Pelotas". Por muito tempo, segundo ele, os negros eram poucos no estádio e nas excursões. "Mas hoje fico feliz por ver que essa não é mais a realidade", completou.

O sonho de marcar o nome na história do time ainda segue, mas agora como presidente. E o principal objetivo, caso o desejo se realize, ele não esconde: "Abrir o clube cada vez mais, receber as pessoas independentemente da cor, classe social ou gênero".

Para os próximos anos ele quer enxergar uma Pelotas mais rica em educação e empregos e para o Pelotas, a volta dos jogos, dos amigos reunidos e um destaque no cenário nacional do futebol.

Terra de diversidade

Pelotas também é terra dos universitários. Desde que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tornou-se política de democratização do acesso ao ensino superior, a cidade também se tornou mais democrática. As ruas do Porto deixaram de ser apenas o endereço de antigas fábricas e passaram a ser o local da maioria dos campi da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Por lá, se vê mais gente, mais cor, mais sorrisos e até mais amor.

E quem vive essa relação com a região portuária e está com saudade da diversidade do local é o engenheiro civil e mestrando em Arquitetura e Urbanismo, Matheus Gomes, 27. Com as aulas suspensas desde meados de março, a rotina de Gomes, que sempre foi relacionada ao bairro, mudou completamente. "Eu saía pela manhã e me dirigia para a FAUrb. Ficava até o final da tarde lá, fazia academia ali perto, e - às vezes - encontrava os meus amigos nos bares do Porto", contou. Hoje, o futuro mestre concentra as atividades em casa. As reuniões, orientações e os momentos de lazer seguem acontecendo, mas de forma virtual.

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A relação de Gomes com o bairro, segundo ele, é de apreço. "Lá é uma área que abrange a diversidade de pessoas e de pensamentos, além de concentrar grande parte dos eventos culturais da cidade". Conhecida pelos barzinhos e por lotar as calçadas na sexta-feira à noite, a região proporciona a arte do encontro, "pois é no Porto que as pessoas se vêem e isso faz muita falta nos dias atuais", completou.

No dia dos 208 anos da cidade, o pelotense deseja que o município continue culturalmente rico, dando valor à diversidade de pessoas que vivem nele.

Os que vivem a rua 

Pelotense de coração, o motorista do transporte coletivo da cidade, Rodrigo Mendes, 42, vive Pelotas há mais de duas décadas - quando chegou da sua terra natal, Herval. Há oito anos ele está nas ruas diariamente, enxergando as precariedades e também as melhorias; convivendo com os moradores da Zona Norte e, agora, lidando com a aflição de trabalhar com o público em meio à pandemia. Enquanto higienizava o ônibus no final da linha, o motorista relatou que o fluxo de pessoas utilizando o transporte diminuiu, assim como o número de pessoas nas ruas. "O que mais movimentava eram as crianças indo à escola", disse. Já os idosos, de acordo com Mendes, seguem nas ruas e nos ônibus. "Os confirmados estão sempre", brincou, mas consciente de que esses eram os que deviam se preservar ainda mais neste momento.

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A jornada dos trabalhadores do transporte coletivo está reduzida, por isso o profissional está trabalhando apenas duas vezes por semana. Com essa redução, chegam as incertezas e a vontade que tudo retorne ao normal. "Quero todo mundo bem para voltarmos a trabalhar todos os dias", apontou.

Sem ver os pais há quase cinco meses, não há dúvidas de que a palavra que resume esse período é mesmo saudade. Além disso, Mendes lida com o receio de contaminar a esposa e os filhos. "O medo é pela minha família", afirmou.

Mesmo com ele trabalhando, todos estão de quarentena, então, os passeios de final de semana também estão fazendo falta. "A gente sente saudade, mas agora só quero que tudo volte ao normal", disse, já se organizando para dar início a mais um trajeto pela cidade.

Quem tinha o hábito de caminhar pelas ruas com certeza já passou pela Juliana Kruger, 45. Pelotense e apaixonada pela cidade e pela corrida de rua, a personal trainer conhece como ninguém cada detalhe das vias do município. No currículo, ela carrega 19 anos de corrida, duas maratonas e uma ultramaratona. "Eu sou uma pelotense nata, eu amo falar de Pelotas, falar para as pessoas 'tudo de bom' que a nossa cidade tem", disse, orgulhosa.

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Os trajetos percorridos pela maratonista variam. Quando o sentimento do dia é nostalgia, ela se desloca para as ruas do Porto; quando quer apreciar o silêncio, o local escolhido é o Calçadão na parte da noite. Mas de todos esses, tem o destino preferido: ir até o Laranjal e retornar. "É uma sensação muito boa de liberdade, de pegar a estrada, de pensar que consigo", contou. Só que agora essa não é mais uma realidade, já que Juliana procura lugares mais isolados para praticar a atividade.

Além das aulas de personal e das corridas individuais, ela é coordenadora de um grupo de corrida. E é justamente essa prática que está no topo das saudades. "Correr junto tem um ar descontraído, um ar de parceria", explicou. Além disso, as competições também fazem falta na vida da educadora física, que tem na corrida uma forma de sustento e, claro, de amor. Feliz com o empenho da cidade em proporcionar as disputas, ela relata que cerca de duas corridas por mês estavam ocorrendo. "Tinha toda uma expectativa de preparo, de resultados e depois o churrasco da comemoração", recordou.

Carinhosamente chamada de Ju, a corredora se sente feliz por ser reconhecida como "a que está sempre correndo na rua", e garante que escutar uma buzina seguida de um "vamos, Ju!" é o melhor combustível.

Para que a Cidade do Doce siga sendo o melhor cenário de suas atividades, ela pede que os investimentos no setor da prática de esportes sejam mantidos, pois é através deles que muitos jovens têm a vida ressignificada.

A saudade de quem está na linha de frente

"Saudade para mim é saber que o meu neto está ali e eu não posso abraçar. Que eu moro com ele e não posso entrar na minha casa. Que o meu amor precisa ser maior que a minha saudade". Esse é o desabafo da técnica de enfermagem do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (HE-UFPel), Marisa Matos, 54. Confiante que a distância é a verdadeira prova de amor, a profissional afastou-se da filha e do neto há cerca de 30 dias e internou a mãe, de 78 anos, portadora do mal de Parkinson, em uma clínica de idosos.

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A rotina da profissional é intensa. E junto com a correria, chega o sentimento de impotência. "Por mais que eu tenha 20 anos de enfermagem, eu não conheço esse vírus, não sei com o que estou lidando", disse. O que ela deixa claro é que faz de tudo para não deixar a desejar e usa todos os ensinamentos que teve para amenizar a dor do próximo.

Há mais de mês, Marisa enxerga a mãe por uma janela, há dois metros de distância. "Eu só peço para ela rezar e garanto que vai ficar tudo bem", contou, com a voz embargada. Para matar a saudade do neto, de seis anos, ela aparece na janela do apartamento e - entre uma conversa e outra - a dupla pede que os abraços retornem o mais rápido possível. "Eu escolhi uma profissão que salva vidas, então, em momento nenhum eu posso colocar a deles em risco".

Depois que tudo passar, Marisa tem um desejo: ter de volta o seu 'porto seguro'. E que brincar com o neto e pegar a mãe no colo voltem a fazer parte da rotina simples que a profissional levava. "Espero que a gente saia dessa situação mais solidários, mais preocupados com o próximo, e que Pelotas se torne ainda mais doce".

JF_7956-saudade juliana-(Foto: Jô Folha - DP)

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