Crônica

A maior cheia da história do Rio Grande do Sul

Lisiani Rotta

Escritora


Durante 22 dias choveu ininterruptamente nos meses de abril e maio de 1941. As águas do Guaíba que subiam no máximo um metro, alcançaram a cota de 4,76 metros. O centro da cidade ficou debaixo d'água e os barcos se tornaram o principal meio de transporte. As águas inundaram o Mercado Público, a Rua da Praia, a Prefeitura Municipal, os bairros Navegantes, Passo da Areia, Menino Deus, Azenha e Centro. Dos 272 mil habitantes de Porto Alegre, na época, 70 mil tiveram as suas casas atingidas. Um terço das indústrias e do comércio inundaram. Além do colapso no abastecimento de água, a cidade ficou totalmente às escuras. Este episódio traumático motivou o Muro da Mauá e outras obras que fazem parte do Sistema de Proteção Contra Cheias. São 68 km de diques, 14 comportas de vedação, 19 casas de bombas muito bem projetadas, mas que, segundo entendidos, estão diferentes do projeto original (que contava com vedações de borrachas e parafusos) e, como toda a obra destinada à segurança, precisa de manutenção. 

Por uma triste coincidência, na mesma época, nos meses de abril e maio, 83 anos depois, o Guaíba ultrapassa, segundo as medições do dia 5 de maio, os cinco metros de altura. A tragédia é reconhecida como o maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul. São mais de 100 mortes registradas, 130 desaparecidos, 374 feridos, 230 mil pessoas fora de casa, 67 mil em abrigos e 163 mil desalojados. Se levarmos em conta as demais cidades atingidas são 1.476 milhão de pessoas afetadas. Obviamente estes números aumentarão consideravelmente até as águas baixarem. Eu estou em Porto Alegre, continuo ilhada, sem poder voltar para casa. Todas as pontes, estradas e o aeroporto estão interditados.

Testemunho o cenário pós-apocalíptico que assola a nossa capital. O que vejo, diariamente, me lembra aqueles filmes de fim do mundo nos quais as pessoas correm para comprar mantimentos e se deparam com as prateleiras dos supermercados vazias. Água potável é artigo de luxo. Não se consegue em lugar algum. Lembram de Mas Max? Mel Gibson remando uma jangada improvisada em busca de terra firme e água potável? Ontem um senhor viu no fundo do meu carrinho do super, um vidro de vinagre de álcool, e correu pra me perguntar onde eu o havia conseguido. Pensou que era água. São dias difíceis. Meu coração doeu quando perguntei ao rapaz do Obra se ele e os familiares estavam seguros e ele caiu no choro. Contou-me que estavam num abrigo. 

Haviam perdido tudo. Imagino a dor de não ter para onde voltar, a angústia de perder o chão, de não ter mais um lugar no mundo, o cantinho onde nos sentimos seguros, o nosso ninho. Disse-me o rapaz: a água levou num instante tudo o que eu conquistei trabalhando duro a minha vida inteira. Apesar da dor, ele se diz grato pela família estar bem, por todos terem saído a tempo. Houve quem não teve a mesma sorte.

Na pediatria da Santa Casa há centenas de crianças, inclusive bebês, sem identificação. Crianças cujas mães, desesperadas, imploraram aos barcos lotados, entregaram a desconhecidos, ou rogaram a Deus soltando-os sobre as águas em banheiras infláveis. Sim. É triste demais. Há relatos de cortar o coração. O momento é de luto e consternação. Vê-se no semblante das pessoas, nas ruas, a tristeza e a desolação. E ainda há o medo do que virá. No momento, grande parte da cidade está às escuras e sem água. Já nos habituamos às sirenes das ambulâncias, dos bombeiros, da polícia e ao ruído das hélices dos helicópteros sobrevoando a cidade. 


As equipes de resgate passam a todo instante carregando botes infláveis e jet-skis. E quando as águas baixarem, o que veremos? Graças a Deus, a dor não vem sozinha. Há também, momentos de alívio e emoção. Resgates inacreditáveis foram possíveis graças à mobilização imediata da comunidade, numa demonstração de solidariedade e heroísmo sem igual. 

Que orgulho da nossa gente! Pessoas de todos os cantos correram para ajudar no resgate às vítimas, na arrecadação e transporte de doações, no apoio aos desabrigados. É o que mais conforta nesse momento. As demonstrações de humanidade. Delas nasce a esperança. Queria terminar esse texto aqui, mas a aflição me consome. A chegada de novas chuvas e as preocupantes previsões para Pelotas, São Lourenço, Rio Grande e Jaguará me roubam o sono. Deus permita que não sejam tão fortemente atingidas! Por precaução, proteja-se querido leitor! Rezemos por dias melhores!


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