Crônica

Nunca diga nunca

Lisiani Rotta

Escritora


Há vinte dias longe de casa, ajudando apenas de forma indireta, surgiu a oportunidade de levar à Pelotas materiais de esterilização para os hospitais. O dia estava lindo, ensolarado, a ponte seria liberada por algumas horas para veículos autorizados, e um novo caminho, um pouco mais longo, aparentemente mais seguro me levou a um trajeto diferente. Infelizmente, viajei quilômetros para ir a lugar nenhum. O cenário era de Mad Max. Terra arrasada. Casas com água até o telhado. Lama por todo o lado. Entulhos. Destruição. Eu já havia visto as imagens na internet, como todo mundo, mas ver a devastação ao vivo, em tamanho e tempo real, é desolador. O cheiro de putrefação que vem das águas é insuportável. O volume é inacreditável. Assustador.

Após dezenas de desvios, interdições, engarrafamentos, acidentes, eu não consegui passar. Nem os caminhões pequenos estavam conseguindo. A água subiu novamente e, uma hora antes de eu chegar, interditaram a ponte novamente.


Foi desanimador. Depois de enfrentar um trânsito que me remeteu ao da Índia, tal a desordem, com caminhões de todos os tamanhos transitando colados um no outro, me deixando num espaço claustrofóbico. Com um acostamento que não salvava ninguém, pois, valia como pista em muitos trajetos. As motos, uma quantidade inacreditável, transitavam a mil, uma atrás da outra, pelo estreito corredor formado entre os carros e caminhões. Ultrapassavam as que estavam à frente, da mesma forma que as que vinham em sentido contrário, todas pelo mesmo corredor estreito. Claro que houve acidentes. A imprudência imperava. Foram cenas estressantes de presenciar. Os policiais, desesperados, tentavam colocar ordem no caos. Mas nada ali era definitivo. Não tinha como ser. Tinham de estar prontos a improvisar e isso gerava ainda mais congestionamentos, mais impaciência, mais tensão. Quando parecia não caber mais uma agulha entre aquele amontoado de latas sobre o asfalto surgiam ambulâncias em alta velocidade, escoltadas por grandes motocicletas, todas com sirenes soando urgência. Os carros se moviam como podiam para deixá-las passar e lutavam como gladiadores para voltar aos seus lugares naquela fila interminável que se movia a 20 km por hora. Com tanta demora, eu não perdi apenas a oportunidade de passar, eu fiquei sem bateria no celular. Meu carregador era

incompatível com a camionete que eu dirigia e deu pane no GPS dela também. Funcionava por três minutos e desconfigurava.  

Anoitecia e eu continuava engarrafada. Ainda precisava fazer o caminho de volta e estava sem GPS. Isso pra mim é bem complicado, pois eu nasci sem GPS. Se eu não conheço o caminho eu não consigo improvisar, posso
parar em qualquer lugar. Assim foi. Peguei o caminho errado e fiquei perdida por mais de uma hora, à noite, em lugares onde não me senti segura para pedir ajuda. As placas não indicam mais os lugares aonde chegaremos. As ruas, interrompidas, nos obrigam a mudar o trajeto a toda hora.

Tenho certeza de que eu só cheguei em casa, a mesma casa que eu deixei às 12h, graças a reza da minha mãe. Não há outra explicação. Não consegui dormir tal a dor que eu sentia em cada músculo do meu corpo. Daqui há dois dias eu tento novamente, por outro trajeto, contradizendo o que eu
disse quando cheguei. “Eu só volto a essa estrada quando tudo normalizar”. Nunca diga nunca!

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