Celina Brod

Quando as certezas vão embora

Por Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Sair do lugar requer habilidades que precisamos desenvolver com rapidez. Habilidades que não sabemos se temos. Foram aproximadamente 35 horas de Pelotas até Providence, uma viagem longa, com horas de voo e espera em aeroportos. Durante o caminho precisei descobrir como ter internet no celular, onde pegar ônibus, como achar a plataforma do trem, o quão longe era caminhar do ponto A até B. O desconhecido solicita toda nossa atenção e o abandono das confortáveis certezas. A previsibilidade e o habitual são como chupetas da mente, quando as perdemos ficamos sem referências, presos ao redor e a nós mesmos. Sobrou pouco espaço mental para as notícias nacionais.

 
Entre uma espera e uma dúvida, entre as expectativas e a realidade que se aproximava, eu espiava o cenário político brasileiro. As eleições passaram, soubemos ao fim do pleito o que sente a maioria. Bolsonaro foi o primeiro presidente a não se reeleger. O homem da Cloroquina apostou na criação de uma realidade alternativa e no antipetismo. Tão acostumado em ter à sua frente apenas seus simpatizantes, achou que construir ameaças e pregar uma missão santa seria o suficiente para convencer mais da metade da população. Não foi. Seus eleitores argumentam que a mídia fez complô, que a censura o prejudicou, que houve fraude nas eleições e que o comunismo avança, mas o grande adversário do Bolsonaro foi ele mesmo. Sua aposta no conflito constante, na negação dos fatos e a distorção constante da obviedade não venceram. Por quê? Porque a realidade, assim como a dor, é incontestável. Multiplique essa dor por 700.000, teremos quase o número de votos que derrotaram a versão de mundo do mito. Bastava uma frase: “Peço ao povo brasileiro calma e que todos se vacinem, vamos sair dessa situação juntos.”

 
Uma frase na hora certa e uma ação correta no instante mais escuro poderiam garantir a vitória, mas não apagariam todo o resto que o fenômeno Bolsonarismo provocou: pessoas descoladas dos fatos e de si mesmas. Indivíduos que se ajoelham e choram, que enfrentam um caminhão em andamento, que acreditam em uma nova ordem de mundo, onde famílias do bem, cristãos trabalhadores e homens patriotas reinam. Alguns adeptos mais fervorosos ainda não aceitaram a queda do líder místico, tentam manter vivo a alma coletiva do Bolsonarismo. São pessoas que investiram emocionalmente nesse propósito e levarão um tempo a admitir que a missão acabou. Alguns jamais admitirão que essa missão nunca existiu. É difícil largar certezas, de algum jeito torto e prejudicial esse movimento acolheu muita gente. Oras, o desalento também é um fato.

 
Se alguns eleitores de Bolsonaro insistem nas últimas faíscas que sobraram desse ideal falido. Alguns Lulistas ainda não se desapegaram do clima eleitoral, continuam nas redes reproduzindo a torcida e seus símbolos, tirando fotos fazendo L com a mão e repetindo refrão. Lula foi democraticamente eleito, não precisa mais de bajulação. Como diz Patrick, o anfitrião do lugar que estou ficando, “as pessoas não gostam de ser independentes no pensamento, ficam ansiosas demais sem alguém que lhes dê certezas”. Patrick me deu essa resposta na varanda da sua casa, ele é um chef de cozinha, nascido na Alemanha e casado com Mercedes, uma engenheira mexicana.

 
Patrick me perguntou: “Celina, o que é afinal Filosofia?” Respondi que era fazer perguntas que não se satisfazem com o “porque sim”. Ele disse: “é o que faço o tempo todo, não compro nenhuma ideia fácil”. Patrick é um cético nato, desconfia do governo, dos americanos, dos imperialistas, dos comunistas, dos banqueiros e da igreja. Patrick confia no calor humano e na salsa dos mexicanos. Estou sem casa aqui no momento. Desde que cheguei caminho pelas ruas caçando algum canto. Entre as caminhadas encontrei um carro adesivado que dizia: “Presidents are not kings, do the right thing” (presidentes não são reis, faça a coisa certa). As eleições acabaram, vamos fazer a coisa certa, ser mais céticos e menos adeptos. ​

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