Rubens Amador

Terna lembrança

Rubens Amador
Jornalista

Como ainda muitos haverão de lembrar, em julho de 1983 o sul sofreu uma grande e inesquecível enchente. Pois foi nessa mesma época, precisamente em 18 de julho, que meu velho ex-mestre, prof. Felicíssimo Silva, no admissão ao Ginásio, como se tratava naquela época esse período da minha juventude, então aluno do Colégio Sagrado Coração de Jesus, cujo fardamento era, em tudo, semelhante ao dos escoteiros. Esse homem inteligente, anos mais tarde - já idoso - se tornou conhecido poeta parnasiano, onde no Diário Popular, publicou inúmeros trabalhos que eram muito apreciados. Pois bem, naquele dia de 1983, se desenrolando aqueles trágicos e contrastantes acontecimentos climáticos acima referidos, apareceu em meu estabelecimento comercial o prof. Felicíssimo Silva, todo molhado - pois chovia muito -, modestamente vestido, barba por fazer, fisionomia ainda extremamente bondosa, característica de suas feições desde moço, e, ao se abrigar em minha firma da forte chuva que caía, pude oferecer-lhe uma xícara de café quente, pois fazia muito frio também. Ele tiritava.

O professor foi um poeta autêntico. Vivia só de aulas particulares que ministrava, disse-me. Sabia fazer poesias, mas não sabia ganhar dinheiro com seu saber. Então, me ofereceu sua última poesia escrita há pouco, segundo ele, relatando o fenômeno climático que sofríamos, de abundante enchente no sul e seca inclemente no nordeste. Sua poesia - uma maravilha - intitulava-se "Dramático contraste". Êi-la:

Por mais que o ser humano se agigante
Na busca infinda da pesquisa e da ciência;
Com seus engenhos chegue à lua e cruze os céus,
A cada dia, cada hora e cada instante,
O homem sente quanto é pouca a suficiência
Para, sem Deus, alcançar os planos seus.
O Plano Eterno que governa a natureza 
Castiga a terra, nos enchendo de tristeza
E, como a fome e a doença, só, não baste,
Sofre o nordeste a estiagem permanente,
Suporta o sul os flagelos desta enchente,
Qual irônico e dramático contraste.
Até que voltem a seus leitos, rios e lagos,
Que se possam resgatar tantos estragos,
Animados da esperança que não morre 
Que nos acudam as modernas invenções:
Helicópteros, o rádio e os aviões,
E todo um povo solidário, que socorre.
Pelotas, 18 de julho de 1983
Assinado: Felicíssimo Silva.

Recebi, agradecido, a poesia que meu ex-professor me oferecia e pedi-lhe que a autografasse. Ali mesmo, no balcão - de improviso - apanhou a caneta com a mão trêmula pelo frio e rapidamente escreveu:

"Neste dia de borrasca, pleno inverno,
Que nos invade um sentimento terno,
Velha amizade de ex-aluno e professor,
Eu ofereço, com sincera modéstia,
Este poema a quem criança um dia 
Foi bom aluno, o Rubens Amador."
De seu velho e sempre amigo (assinado): Felicíssimo Silva.

O professor Felicíssimo faleceu no ano de 1987. E a crônica de hoje nasceu do meu reencontro com a poesia que me foi por ele oferecida e que esteve dormindo entre meus guardados por exatos 36 anos. Dia destes deparei-me com ela entre meus papéis. Confesso que uma terna emoção de saudade me invadiu ao reencontrá-la.

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